“A reforma que foi sem nunca ter
sido
POR BOLÍVAR LAMOUNIER
Em 1985, antes mesmo de concluída
a transição do regime militar para o civil, a reforma política já ganhava corpo
no debate público. Depois tivemos a Constituinte, o plebiscito sobre sistema de
governo e alguns esforços isolados, mas o saldo, convenhamos, é modesto.
Ninguém ignora que reformas
políticas são sempre dificílimas. Trata-se de pedir aos próprios deputados e
senadores que alterem o sistema pelo qual se elegem e que conhecem bem. Todos
têm como avaliar se determinada alteração vai beneficiá-los ou prejudicá-los e
é em função desse cálculo que tomam posição. Nenhum deles se deixa seduzir
pelos encantos do haraquiri. Mas devemos também reconhecer que ao longo destas
três décadas o encaminhamento da questão e as propostas específicas geralmente
deixaram a desejar.
Doravante, se formos reanimar o
corpo moribundo da reforma, precisamos ter o bom senso de partir de disfunções
patentes e imediatas no sistema político. Caso contrário, limitemo-nos a
proclamar, como é praxe, que o edifício democrático tem como base a soberania
popular, mas nosso povo, que pena, não tem condições de exercer a soberania que
teoricamente lhe imputamos. E fechemos o discurso afirmando, como diria o
saudoso Dias Gomes, que a reforma foi sem nunca ter sido.
As disfunções “patentes e
imediatas” a que fiz referência estão aí, bem à vista de todos. Sem um
ordenamento minimamente racional da campanha, não é razoável esperar que o
corpo eleitoral vote com um grau razoável de racionalidade. E já aqui nos
deparemos com três graves problemas. Primeiro, um quadro partidário reduzido
praticamente à irrelevância, estraçalhado pela crise econômica, pela
insegurança decorrente da criminalidade e pelos sucessivos escândalos de
corrupção. Segundo, Jair Bolsonaro, o candidato que desponta como provável
vencedor, que aqui tomo como exemplo, é muito mais um reflexo da insegurança
reinante do que o agente político que a colocou no topo das prioridades. A
força eleitoral que parece ter decorre muito mais de ter catalisado o medo que
permeia a sociedade do que das modestas propostas que tem oferecido para
combater o crime.
Um aspecto ainda mais importante
do fenômeno Bolsonaro é o completo descasamento entre o tempo político efetivo
e o horizonte de tempo que uma pessoa realista haverá de avaliar como
necessário para o controle da violência. O tempo político efetivo é o
quatriênio presidencial. No plano da campanha, o que importa é saber quem
presidirá o País no quatriênio 2019-2022. Ora, ninguém em sã consciência
imaginará que o nosso nível altíssimo (e crescente) de violência possa ser
reduzido nesse horizonte de tempo. O mesmo pode ser dito da corrupção
sistêmica, não obstante o começo mais efetivo do combate que se lhe vem dando.
Ou seja, a disputa pautada pelo bolsonarismo está assentada sobre a fantasia de
um avanço decisivo no combate à criminalidade violenta, expectativa descabida
em se tratando de um mandato presidencial e num país ainda encalhado nas
condições econômicas legadas pelo governo da sra. Dilma Rousseff.
O que, sim, cabe, e é imperativo,
todos sabemos. É restaurar a confiança dos agentes econômicos no governo e no
País e, com paciência e realismo, começar a repor a economia nos trilhos. É
certo que Bolsonaro conta com a ajuda de um economista respeitado, o sr. Paulo
Guedes, mas acreditar que biografias tão rigorosamente antitéticas irão
harmonizar-se no dia a dia do governo é um ato de fé.
Subjacente às incongruências
acima delineadas há uma disfunção grave: o famigerado horário eleitoral
gratuito. Originária da longínqua eleição legislativa de 1974, essa aberração é
a quadratura do círculo: uma tentativa de enquadrar os candentes problemas que
afligem o País numa moldura política circense. É um fator importante na redução
dos partidos a agremiações meramente cartoriais e para a desmoralização da
política de modo geral.
Se a reforma política voltar à
pauta, eu me atreveria a oferecer duas soluções simples. Primeiro, separar a
eleição executiva (presidente e governadores) da legislativa (senadores e
deputados federais e estaduais), ficando estas para um ou dois meses depois,
como na França. Enxugando, assim, a eleição executiva, seria simples
estabelecer um procedimento sério para o debate entre os candidatos,
realizando-se um debate por dia, com a duração de, digamos, duas horas. O
Tribunal Superior Eleitoral procederia ao sorteio do primeiro candidato, aquele
que daria início à discussão, escolhendo o adversário de sua preferência; estes
dois ficariam excluídos dos sorteios sucessivos, para que todos ficassem
contemplados. Durante uma semana, num auditório apropriado, teríamos, então, o
enfrentamento de dois e apenas dois candidatos, com o tempo necessário à
adequada elucidação das semelhanças e diferenças entre suas propostas. O
processo se repetiria na semana seguinte, com os candidatos a governador,
dentro do mesmo formato.
Racionalizados os confrontos da
campanha, e com base em estudos técnicos apropriados, a legislatura poderia
debruçar-se sobre o magno problema do sistema de governo: vamos manter o
aberrante “presidencialismo de coalizão” ou vamos discutir a sério a opção
parlamentarista? As outras questões que têm sido debatidas – a do sistema
eleitoral (a escolha entre o proporcional atual, o distrital puro ou o
distrital misto), mas também meios para evitar a proliferação desordenada de
partidos, o financiamento das campanhas, etc. – deveriam ser analisadas após as
duas cruciais decisões a que me referi: a reorganização da campanha eleitoral e
a opção entre os dois sistemas de governo.”
---------------
AGD comenta:
Sem comentários
Nenhum comentário:
Postar um comentário