“Só o instinto
nos salva
Por Bolívar
Lamounier
A ideia é
aterradora e absurda, mas, no momento, tudo indica que o Brasil está perdendo a
capacidade de equacionar seus problemas de maneira racional e civilizada, pela
via da política. Nessa marcha, só o instinto de sobrevivência nos salvará.
No falatório
sobre a intervenção, sobre as candidaturas presidenciais, sobre o funcionamento
das instituições, o tom predominante é um desânimo furibundo, e até mais que
isso, uma vontade meio doida de achar uma solução fácil, rápida e definitiva,
ainda que o preço seja a quebra da ordem civil. No limite, é como se todos
quisessem que metade (sua metade) da população matasse a outra, presumindo que
a metade sobrante se dedicaria sinceramente à realização dos valores que elegeu
como os mais altos. Isso vem por todos os lados, não é privilégio de nenhum
partido ou grupo ideológico.
E o pior,
infelizmente, é que por trás dessa fumaça realmente há muito fogo. Tal
desorientação não chega a surpreender, pois estamos mal e mal saindo da pior
recessão de nossa História e tomando consciência da metástase de corrupção que
se difundiu por quase todo o sistema institucional do País. Dispenso-me de
elaborar este ponto, limitando-me a observar que o cartel das empreiteiras
botou no bolso praticamente toda a estrutura partidária de que dispúnhamos:
quatro ou cinco organizações com algum potencial e umas trinta obviamente
inúteis. Hoje vemos esvair-se até aquele elementar sentimento de lealdade sem o
qual a vida interna de um partido se torna inviável. Na mais alta Corte de
Justiça do País, salta aos olhos que alguns juízes trabalham sorrateiramente
para livrar o sr. Luiz Inácio Lula da Silva, um corrupto notório, já
sentenciado a 12 anos e um mês de prisão. No Senado e na Câmara, só quem mantém
as estatísticas em dia sabe quantos parlamentares estão indiciados, acusados ou
já na condição de réus.
A intervenção
federal no sistema de segurança do Rio de Janeiro pôs em alto-relevo a questão
da corrupção nos corpos militares e policiais, que inclui a entrega de armas
potentes ao narcotráfico e à bandidagem em geral. Noves fora, então, a ressalva
que se há de fazer diz respeito à competência e à seriedade da equipe
econômica, da equipe liderada pelo juiz Sergio Moro e pela Polícia Federal,
graças às quais o País não descarrilou por completo.
No culto da
irracionalidade, a esquerda ganha por duas cabeças. Na questão da intervenção
no Rio de Janeiro, por exemplo, ela aposta no fracasso com base em seus
tradicionais cálculos eleitorais, ou num requintado cinismo, “esquecendo”, por
exemplo, no tocante à concessão de mandados coletivos, as posições que a
ex-presidente Dilma Rousseff defendeu em 2016. Não só a esquerda, mas ampla
parcela do Congresso recusou-se a aprovar a reforma da Previdência, embora
consciente da precariedade fiscal em que nos encontramos e de que o sistema
brasileiro de seguridade é campeão mundial em transferir renda dos pobres para
os ricos.
Não me sinto no
direito de aborrecer os leitores me estendendo sobre a deterioração em que se
encontra nossa capacidade de conduzir racional e civilizadamente as operações
de governo, mas há uma questão mais ampla, que transcende todas as já
mencionadas, para a qual me vejo obrigado a chamar a atenção. Refiro-me ao
médio prazo, ou seja, ao futuro de nosso país dentro de uma ou duas décadas.
Nessa referência de tempo, se não recuperarmos a capacidade de raciocinar e
colaborar, realmente, só o instinto de sobrevivência nos salva.
O quadro que me
esforcei por esboçar é em si mesmo sinistro, mas é brincadeira de criança se o
colocarmos num horizonte de 20 anos. Já me referi outras vezes a esse ponto e
temo ter de voltar a ele muitas vezes nos próximos meses, ainda mais em se
tratando de um ano eleitoral. A incapacidade da política acarreta uma
progressiva liquefação do próprio Estado. O País perde sua stateness, ou seja,
a presença efetiva da máquina de governo. Ninguém ignora que diversas áreas do
Rio de Janeiro já há muito tempo se tornaram inacessíveis à autoridade pública.
O que muitos talvez não saibam é que os Correios já não entregam
correspondência em quase metade dos endereços da Cidade Maravilhosa. Refiro-me
a ela porque é lá que a perda da “estatalidade” se tornou mais perceptível, mas
em maior ou menor grau o processo se manifesta no País inteiro. Com um fator
agravante: temos agora um vizinho, a Venezuela, onde o Estado atingiu um
estágio avançado de putrefação, forçando centenas de milhares de cidadãos a
buscarem refúgio em Roraima.
Com a contração
causada pela recessão engendrada pelo lulopetismo, nossa renda anual por
habitante deve ser atualmente metade da correspondente à Grécia e bem inferior
à de Portugal. Se, recuperando a economia, lograrmos crescer 3% ao ano, o que
não é trivial, precisaremos de mais de 20 anos para alcançar os dois países
citados, e lá chegaremos com uma distribuição de renda muito pior, com uma
situação educacional claramente inferior, com as condições de saneamento que
conhecemos e possivelmente com índices ainda muito mais altos de violência.
Isso significa que o debate público dos últimos anos nem sequer arranhou a
superfície dos verdadeiros problemas, que são a velocidade do crescimento e a
profundidade das reformas de que necessitamos.
Escusado dizer
que não me estou referindo à antiga ladainha do “governo forte”, pedra de toque
da retórica fascista, que por aqui vicejou vigorosamente à época da ditadura
getulista. Refiro-me ao óbvio: o imperativo de quebrar a resistência dos grupos
corporativos e encetar um esforço reformista muito maior. As reformas virão, de
um jeito ou de outro: pelo caminho mais ou menos civilizado da política ou por
sucessivas ondas de anarquia e violência.”
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AGD
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