“Quem foi que
disse que o Haiti é aqui?
Por JOSÉ
NÊUMANNE
Não resta
dúvida nenhuma de que a adoção do tema da segurança pública como prioridade
absoluta do governo federal tem o objetivo de resgatar Temer do fundo do fosso da
impopularidade e alçá-lo, se não à eventualidade de uma muito improvável
reeleição, pelo menos à de cabo eleitoral com um mínimo de dignidade. Toda
polêmica a respeito começou a ser dissolvida quando seu marqueteiro pessoal,
Elsinho Mouco, e o especialista em pesquisas Antonio Lavareda contaram à
repórter Andrea Sadi, da GloboNews, que a ofensiva contra a violência no Rio
serviria para “capitalizá-lo politicamente”.
Logo depois,
entrevista do primeiro ao articulista Bernardo Mello Franco, do Globo, não apenas
confirmou, como cercou o objetivo de base e premissas indiscutíveis. Os
desmentidos posteriores apenas confirmaram que o eco do óbvio ululante (apud
Nelson Rodrigues) reverbera até tornar o truísmo ilusório uma verdade
indiscutível. A leitura da nota oficial do chefe, feita pelo porta-voz,
oportunamente chamado de Parola (palavra em italiano), vai além da confirmação
de que palavras têm poder, no caso dos sobrenomes de Mouco e Lavareda, a surdez
que queima e não ilumina. Todos os pronunciamentos oficiais e oficiosos a
respeito da pendenga deixam claro que o chefe dos oráculos não ficou satisfeito
com a revelação de seu segredo de Polichinelo, mas a autoria assumida pelo
inconfidente só compromete ainda mais seu “sincericídio”. Afinal, a loquacidade
inoportuna dos paus-mandados não foi punida com afastamento nem com alerta de
desconfiança. A questão que resta a decidir é se o plano revelado vai, ou não,
ser confirmado em pesquisas e urnas.
Para que esse
objetivo seja ao menos avaliado convém, antes, passar pela confirmação dos
fatos. Os índices de criminalidade deixarão de tornar insuportável a vida das
vítimas pacíficas e honestas da insegurança pública vigente a tempo de produzir
efeitos no apoio e na preferência eleitoral da cidadania? Tempo não faltará,
previu Mouco a Mello Franco.
O problema do
prazo agora é mais crucial do que nas experiências anteriores. Na Eco-92, nos
Jogos Pan-Americanos de 2013, no Mundial da Fifa de 2014 e na Olimpíada de
2016, o pacto de convivência pacífica entre a autoridade e chefões das
quadrilhas teve duração determinada e curta. A expressão “férias para bandidos”
não foi criada pela imprensa insubmissa nem pela oposição acuada, mas pelo
desde então comandante das forças de ocupação do Rio, o comuno-democrata Raul
Jungmann. O prazo atual de dez meses é longo demais para um negócio arriscado e
disputado como o é o mercado de entorpecentes sustentado pelo contrabando de
armas. Como uma indústria dessas resistiria a folga tão dilatada?
O compromisso
de agora não admite pausa para ir ali e voltar já. Agora é pra valer. É entrar
na área e ocupá-la sem pensar em deixar os guerreiros dos dois lados tirarem a
sesta. A intervenção na Segurança do Rio, com a conveniência de deixar o
companheiro Pezão, do MDB, agindo na continuação do desmanche da gestão
estadual e das finanças públicas, não pode ser comparada à “ajuda humanitária”
no distante e ínfimo Haiti, ministrada longe da vigilância da imprensa, da
impertinência do Ministério Público e da atenção do juizado federal de primeira
instância. Nenhuma dessas instituições cruzará os braços para o arbítrio ou
para a mortandade.
Os invasores do
espaço urbano carioca, egressos de quartéis, onde são mantidos longe da
realidade e protegidos da lei dos civis por sua Justiça peculiar, começaram a
pressentir os efeitos dessa diferença. Os comandantes do Exército pediram à
Justiça civil mandados coletivos de busca e apreensão, depois que seu batedor
no campo minado das notícias percebeu que exigir capturas seria demais. O
presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio, Milton Fernandes de Souza,
negou-as. Outras idas e vindas do gênero ocorrerão.
O sucesso da
iniciativa dependerá de fatos alheios ao decreto assinado por Temer. A farda de
camuflagem e as regrinhas primárias de convívio com os meios de comunicação com
que o general Braga Netto tentou emular o comunicador da ditadura Rubem Ludwig
não bastarão para convencer as pessoas submetidas às normas de identificação
nas comunidades pobres de que seu desconforto será compensado com segurança. O
vício do cachimbo entorta a boca e elas sabem que, quando o poder público as
relega à desgraça, são socorridas pelos traficantes.
Cada um sabe
onde lhe dói o calo e o desprezo do ministro da Segurança, gerado numa costela
da Justiça, pela classe média contrasta com a discriminação escravocrata de
quem não submeteu a elite branca da zona sul a métodos para restringir o ir e
vir de pobres, pretos e pardos, ninguém sabe se inimigos ou protegidos. Como na
Kasbah de Argel, de onde rebeldes saíram para expulsar os franceses, que
torturaram quem os derrotaria.
O interventor
tenta impor moral de piadas de caserna para domesticar os repórteres escalados
para sua primeira entrevista. Mas não conseguiu transformar suas prédicas de
ordem unida em notícias de interesse geral. Os R$ 42 bilhões em cinco anos, a
perder de vista, bastarão para reequipar as polícias de todos os Estados
brasileiros? O que o Exército fará para pôr fim à corrupção policial, sem mudar
comandantes e delegados? Como enfrentar as relações íntimas entre crime e
corrupção, se o capataz do chefão do “quadrilhão” do MDB do Rio continua no
comando, prestigiando o encarregado dos presídios onde o poderoso Cabral vivia
em conforto de fazer inveja a don Pablo Escobar? Quem o interventor escolherá para
dar à família enlutada a notícia da morte do primeiro combatente inocente
baleado por algum criminoso para quem a vida nada vale?
Segundo Samuel
Johnson, o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Quando se perceberá que
a ilusão é o primeiro pretexto dos oportunistas?”
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AGD
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