“O silêncio que
esse barulho todo esconde
POR FERNÃO LARA
MESQUITA
E de repente,
ao tombar o quinto milésimo centésimo vigésimo sexto corpo nas ruas onde, se
nada piorar, haverão de cair outros 54.864 homens, mulheres e crianças
assassinados antes que 2018 acabe, levantou-se o grito: “Mataram um dos
nossos”!
E o mundo veio
abaixo!
Os arautos do
ódio - de classe, de raça, de gênero e o mais - assumem-se. Não pedem soluções,
tratam apenas de justificar a guerra. Todos os demais parecem perdidos. Não há
mais fronteira entre fato e versão ou relação entre causa e efeito. As
“narrativas” são reafirmadas como conclusão da coleção de fatos que as negam. O
escrivão da Polícia Federal que “desviou” a munição que matou Marielle, a mesma
com que foi perpetrado o maior massacre da história de São Paulo e aparece em
mais meia dúzia de outras cenas de crimes hediondos, “foi preso, mas já está
solto”. E “nunca foi expulso da corporação”. Frequenta os mesmos locais de
trabalho dos heróis da Lava Jato na única polícia centralizada e com alcance
nacional do País.
As armas que
dispararam as balas que ele forneceu provavelmente têm origem semelhante, mas,
ainda que o barulho todo se tenha justificado pela busca de culpados, um valor
mais alto se alevanta. O único culpado identificado permanece intocável. Os
parentes de suas vítimas continuam pagando os seus especialíssimos “direitos
adquiridos”. E não há dado da realidade que abale a fé cega das nossas
televisões e seus especialistas amestrados na capacidade das “autoridades” de
fazer decretos sonhados se transformarem em realidade. Elas seguem impávidas
martelando por minuto que o “controle de armas” e a centralização de todas as
polícias são as soluções finais para a epidemia de crimes que insiste em se
alastrar desenfreada pelo País com o mais rígido controle de armas e munições do
mundo.
Corre paralela
uma cruzada furiosa “contra a maledicência”. Exige-se a criminalização da
dissonância. “Coletivos” de “especialistas em democracia digital” (?),
chancelados como tal pela imprensa profissional, animam-se a publicar índices
de pessoas e de sites proibidos. Redes nacionais de televisão promovem
diariamente rituais de execração pública de mensagens privadas. Poetas e
jornalistas clamam por censura. Tudo está fora de ordem. A mentira e o
autopoliciamento já são condições de sobrevivência e as retratações públicas
antes das execuções se vão tornando corriqueiras.
“Por minha
culpa, minha máxima culpa, pequei por pensamentos, palavras... e obras.” Velhos
hábitos demoram para morrer. Cá estamos de volta à fronteira entre a democracia
e a heresia. Quantas vezes a humanidade já apagou essa linha e acabou
terrivelmente mal?
Os debates nas
televisões já começam vencidos. Por trás de cada argumento posto ou omitido
esconde-se um privilegiozinho que se quer eterno. O que se propõe nunca é
resolver problemas, é, no máximo, impedir que se manifestem os efeitos de não
se atacar a causa fundamental que os produz. Vale falar de tudo menos da
dispensa da competição, da estabilidade vitalícia no emprego, haja o que
houver, dos brasileiros de primeira classe, em plena era da disrupção. A mãe de
todos os privilégios. O maior de todos os “foros especiais”. E isso “brifa”
todas as tribunas públicas da Nação.
A Constituição
de 88 transformou a proteção condicionada às funções de Estado no “direito” de
não ser julgado pela qualidade do seu trabalho e a estendeu a todo e qualquer
sujeito que, pelo método que for, conseguir enfiar, um dia, um pé dentro das
fronteiras do Estado. E, a seguir, “petrificou” sua obra. São 30 anos de
impotência absoluta do eleitor e do contribuinte brasileiros antes e depois do
ato fugaz de depositar seu voto na urna. São 30 anos de seleção negativa. Tempo
bastante para nos acomodarmos, de geração em geração, à discriminação
institucionalizada. Tempo bastante para cada casta aprender o seu lugar neste
florão da América.
De degrau em
degrau, chegamos à beira do último. Já não é o governo quem governa. Ele ousou
desafiar os privilégios da privilegiatura e, por isso e não mais que isso, foi
desconstruído. Decisões negociadas no Congresso Nacional em nome de 144 milhões
de votos? Revoguem-se! É outro que ousou ensaiar um voto contrário aos
privilégios da privilegiatura!
Quem de fato
governa; quem tem a última palavra sobre tudo são as corporações do Estado
aparelhadas pelo “ativismo”, não mais “do Judiciário” como um todo, porque já
não é preciso tanto, mas da metade + 1 do STF aparelhado pelo lulismo, que é
quanto basta no ponto a que chegamos.
Sem a
prerrogativa de retomar mandatos e empregos públicos abusados, de rejeitar leis
e decretos malcheirosos, de repelir juízes a serviço da injustiça; sem armar o
eleitor para empurrar cada ação do “sistema” na direção do interesse coletivo,
a conquista de empregos públicos, de mandatos e de governos basta-se a si mesma
e tudo o que as urnas decidem é a delimitação de territórios privativos de
caça.
Darwin não tem
partido nem respeita nível de escolaridade. Só sobrevive quem se adapta. O
“concursismo” passa a ser a única alternativa para a servidão e o
“aposentadorismo”, o único horizonte para o futuro. Todo brasileiro sabe, até
os analfabetos, qual é a diferença entre prender na 2.ª instância ou nunca,
entre permitir ou não que ladrões voltem para dentro dos cofres públicos, entre
admitir ou não a permanência de criminosos condenados dentro da polícia. A
corrupção sistêmica, a servidão tributária, a anemia crônica do Estado, a miséria
e a violência de que o Rio de Janeiro é o exemplo paroxístico e Marielle foi
mais uma vítima, são mera consequência disso.
A continuação
da privilegiatura é insustentável nos limites da democracia e mesmo nos limites
muito mais elásticos da nossa pseudodemocracia. Uma das duas terá de acabar, e
já. É isso que está em jogo.”
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AGD
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