“Pororoca de ilusões
Por Bolívar Lamounier
“Outros povos podem ser felizes ou desgraçados por obra de
estranhos. Os povos democráticos são os únicos que têm o bem e o mal feitos por
suas próprias mãos” - J. F. Assis Brasil, político gaúcho, 1893
Nunca vi, mas posso imaginar a beleza do vagalhão, do grande
estrondo que se forma na foz do Rio Amazonas quando aquele enorme curso d’água
colide com as águas de outros rios.
A pororoca é um fenômeno real, maciço e formidável, que
qualquer pessoa pode perceber a grande distância; uma difícil metáfora,
portanto, para o nosso momento político, permeado muito mais por ilusões,
incongruências, movimentos erráticos e até por desatinos que por ações
organizadas e efetivas. O mais comum no curso da História brasileira é as
forças políticas se contraporem de forma previsível, uma tentando ser
pragmática e racional, obediente aos requisitos da economia, e a outra se
deixando levar por (ou adotando como tática) algum delírio populista, de fundo
emocional, religioso ou ideológico.
Penso, no entanto, que o Brasil atual se afastou daquele
cenário tradicional e nada faz crer que retornará tão cedo à normalidade.
Afastou-se – excetuado, naturalmente, o esforço do ministro Paulo Guedes no
manejo da economia – em vista da linha divisória que se estabeleceu entre duas
tribos alucinadas: petistas versus bolsonaristas.
Para bem apreender a referida mudança parece-me
imprescindível remontar à eleição de 2018, na qual a maioria dos eleitores
votou numa das duas principais alternativas com o único intuito de evitar a
outra. Os partidos ditos “de centro” naufragaram porque imaginaram poder
navegar em seus frágeis barquinhos oratórios, não percebendo o portento vagalhão
que se avizinhava. Claro, o embate das duas rejeições não se formou no vácuo.
Constituiu-se no caldo de cultura de hostilidade a tudo e a todos que ganhou
corpo em função da situação econômica, da maré montante da violência, da
deslealdade de certas autoridades no tocante a suas respectivas missões
institucionais e, não menos importante, dos fatos trazidos a público pela
Operação Lava Jato. Este último aspecto merece breve reflexão. Não é raro uma
sociedade reagir negativamente a uma grande mudança em razão do desconforto e
do mau humor que ela engendra – refiro-me aqui à constatação de que a corrupção
se alastrara por todo o corpo político, contaminando os três Poderes e grande
parte do meio empresarial –, não obstante tal mudança ser o ponto de partida para
um importante avanço na vida pública.
Comecei falando de duas grandes ilusões. Para delinear a
ilusão petista seria útil remontar às origens do Partido dos Trabalhadores,
relembrar a desconjuntada composição de seus quadros e seu idílico “socialismo por
construir” – esboço de uma ideologia evocativa das catacumbas. Parece-me,
porém, suficiente frisar que a unidade e o dinamismo daquela imensa maçaroca
repousava sobre um fato deveras estapafúrdio: a devoção quase religiosa a um
líder populista, Luiz Inácio Lula da Silva, que nunca levou a sério qualquer
projeto de País, empenhando-se tão somente, e em tempo integral, em levar
avante sua pequena Realpolitik. Paradoxalmente, a condutibilidade atmosférica
do petismo deveu-se desde sempre a seu descompromisso com políticas
consistentes de crescimento e a sua rasa fundamentação intelectual.
Deixo para os pesquisadores de opinião e para os psicólogos
sociais a tarefa de descrever as antenas que levaram Jair Bolsonaro a captar e
personificar a crescente dilaceração da sociedade brasileira de alguns anos
para cá. Não posso eximir-me de dizer algo sobre o governo Bolsonaro, que em
poucos dias concluirá seu primeiro ano, mas adianto que dificilmente terei algo
de novo a dizer a esse respeito. O que primeiro salta aos olhos é o bifrontismo
do governo. De um lado, a área econômica, sob o comando de Paulo Guedes e de
Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, trabalhando com afinco e
coesão, numa direção que me parece correta. Do outro, uma acentuada cacofonia,
da qual o próprio presidente participa com notável intensidade. O presidente
tem dito e repetido que economia “é com o Guedes”, ficando ele, o presidente,
com o restante. Nesse aspecto, penso que o presidente se equivoca redondamente,
uma vez que tal distinção inexiste na prática governamental. Ajustar as contas
públicas, atrair investimentos e repor a economia nos trilhos do crescimento é
uma operação complexa, que exige a colaboração de todos os setores do
Executivo, em colaboração com os outros dois Poderes, orientando-se o conjunto
no sentido de estabelecer a estabilidade e previsibilidade do “ambiente de
negócios”.
Ora, com todo o respeito, sou obrigado a registrar que o
presidente fala muito mais do que deve, intervindo de forma errática em
diversos temas que não lhe dizem respeito. Falta-lhe, evidentemente, a chamada
“liturgia do cargo”, ou seja, a sobriedade, o comedimento e a imparcialidade
sem os quais a mais alta magistratura não funciona a contento. No contexto
atual, o papel do presidente precisa ser muito mais o de um pacificador que o
de um incitador de conflitos.
8Mas qual será, no essencial, a grande ilusão bolsonarista?
É, a meu juízo, sua incapacidade de enxergar o Brasil numa perspectiva
histórica mais dilatada. A melhor ilustração dessa deficiência é ter o
presidente colocado na estratégica área da educação um técnico aplicado, mas
que não dá indícios de conhecer os entraves que a paralisam. Sabemos todos que
o Brasil ainda se digladia com a chamada “armadilha da baixa renda”. Se nosso anseio
de retomar o crescimento do PIB se mantiver na faixa de 2% a 3% ao ano,
levaremos pelo menos 25 anos para dobrar nossa renda per capita. Não é exagero
afirmar que tal cenário beira o insustentável.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário