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sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Pororoca de ilusões




“Pororoca de ilusões
     
Por Bolívar Lamounier

“Outros povos podem ser felizes ou desgraçados por obra de estranhos. Os povos democráticos são os únicos que têm o bem e o mal feitos por suas próprias mãos” - J. F. Assis Brasil, político gaúcho, 1893

Nunca vi, mas posso imaginar a beleza do vagalhão, do grande estrondo que se forma na foz do Rio Amazonas quando aquele enorme curso d’água colide com as águas de outros rios.

A pororoca é um fenômeno real, maciço e formidável, que qualquer pessoa pode perceber a grande distância; uma difícil metáfora, portanto, para o nosso momento político, permeado muito mais por ilusões, incongruências, movimentos erráticos e até por desatinos que por ações organizadas e efetivas. O mais comum no curso da História brasileira é as forças políticas se contraporem de forma previsível, uma tentando ser pragmática e racional, obediente aos requisitos da economia, e a outra se deixando levar por (ou adotando como tática) algum delírio populista, de fundo emocional, religioso ou ideológico.

Penso, no entanto, que o Brasil atual se afastou daquele cenário tradicional e nada faz crer que retornará tão cedo à normalidade. Afastou-se – excetuado, naturalmente, o esforço do ministro Paulo Guedes no manejo da economia – em vista da linha divisória que se estabeleceu entre duas tribos alucinadas: petistas versus bolsonaristas.

Para bem apreender a referida mudança parece-me imprescindível remontar à eleição de 2018, na qual a maioria dos eleitores votou numa das duas principais alternativas com o único intuito de evitar a outra. Os partidos ditos “de centro” naufragaram porque imaginaram poder navegar em seus frágeis barquinhos oratórios, não percebendo o portento vagalhão que se avizinhava. Claro, o embate das duas rejeições não se formou no vácuo. Constituiu-se no caldo de cultura de hostilidade a tudo e a todos que ganhou corpo em função da situação econômica, da maré montante da violência, da deslealdade de certas autoridades no tocante a suas respectivas missões institucionais e, não menos importante, dos fatos trazidos a público pela Operação Lava Jato. Este último aspecto merece breve reflexão. Não é raro uma sociedade reagir negativamente a uma grande mudança em razão do desconforto e do mau humor que ela engendra – refiro-me aqui à constatação de que a corrupção se alastrara por todo o corpo político, contaminando os três Poderes e grande parte do meio empresarial –, não obstante tal mudança ser o ponto de partida para um importante avanço na vida pública.

Comecei falando de duas grandes ilusões. Para delinear a ilusão petista seria útil remontar às origens do Partido dos Trabalhadores, relembrar a desconjuntada composição de seus quadros e seu idílico “socialismo por construir” – esboço de uma ideologia evocativa das catacumbas. Parece-me, porém, suficiente frisar que a unidade e o dinamismo daquela imensa maçaroca repousava sobre um fato deveras estapafúrdio: a devoção quase religiosa a um líder populista, Luiz Inácio Lula da Silva, que nunca levou a sério qualquer projeto de País, empenhando-se tão somente, e em tempo integral, em levar avante sua pequena Realpolitik. Paradoxalmente, a condutibilidade atmosférica do petismo deveu-se desde sempre a seu descompromisso com políticas consistentes de crescimento e a sua rasa fundamentação intelectual.

Deixo para os pesquisadores de opinião e para os psicólogos sociais a tarefa de descrever as antenas que levaram Jair Bolsonaro a captar e personificar a crescente dilaceração da sociedade brasileira de alguns anos para cá. Não posso eximir-me de dizer algo sobre o governo Bolsonaro, que em poucos dias concluirá seu primeiro ano, mas adianto que dificilmente terei algo de novo a dizer a esse respeito. O que primeiro salta aos olhos é o bifrontismo do governo. De um lado, a área econômica, sob o comando de Paulo Guedes e de Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, trabalhando com afinco e coesão, numa direção que me parece correta. Do outro, uma acentuada cacofonia, da qual o próprio presidente participa com notável intensidade. O presidente tem dito e repetido que economia “é com o Guedes”, ficando ele, o presidente, com o restante. Nesse aspecto, penso que o presidente se equivoca redondamente, uma vez que tal distinção inexiste na prática governamental. Ajustar as contas públicas, atrair investimentos e repor a economia nos trilhos do crescimento é uma operação complexa, que exige a colaboração de todos os setores do Executivo, em colaboração com os outros dois Poderes, orientando-se o conjunto no sentido de estabelecer a estabilidade e previsibilidade do “ambiente de negócios”.

Ora, com todo o respeito, sou obrigado a registrar que o presidente fala muito mais do que deve, intervindo de forma errática em diversos temas que não lhe dizem respeito. Falta-lhe, evidentemente, a chamada “liturgia do cargo”, ou seja, a sobriedade, o comedimento e a imparcialidade sem os quais a mais alta magistratura não funciona a contento. No contexto atual, o papel do presidente precisa ser muito mais o de um pacificador que o de um incitador de conflitos.

8Mas qual será, no essencial, a grande ilusão bolsonarista? É, a meu juízo, sua incapacidade de enxergar o Brasil numa perspectiva histórica mais dilatada. A melhor ilustração dessa deficiência é ter o presidente colocado na estratégica área da educação um técnico aplicado, mas que não dá indícios de conhecer os entraves que a paralisam. Sabemos todos que o Brasil ainda se digladia com a chamada “armadilha da baixa renda”. Se nosso anseio de retomar o crescimento do PIB se mantiver na faixa de 2% a 3% ao ano, levaremos pelo menos 25 anos para dobrar nossa renda per capita. Não é exagero afirmar que tal cenário beira o insustentável.”

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