“Atos institucionais
Por Denis Lerrer Rosenfield
A polêmica suscitada pelo deputado Eduardo Bolsonaro a
propósito do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), respaldada depois pelo próprio
ministro da Fazenda, é da maior gravidade por expor um pendor autoritário. Atos
institucionais, como os que caracterizaram a ditadura militar de 1964, são
derivados de uma ruptura institucional, a partir da qual um novo regime é
estabelecido. Não são atos constitucionais, mas resultam da violência
instaurada por um “golpe”, por uma “revolução”, ou qualquer outro nome que se
queira dar. A questão reside em que são instrumentos jurídicos provenientes do
uso da força, que rompe a ordem constitucional vigente. Dá para brincar com
declarações desse tipo?
Não dá para compreender o AI-5 sem remontarmos aos atos
anteriores, em particular o AI-1. A perspectiva histórica é importante. O
primeiro ato do regime militar foi resultado de uma tomada de poder por via da
ruptura institucional e constitucional. A quebra da ordem jurídica situa-se
fora da Constituição, que se torna subordinada ao ato de força e à sua nova
legalidade, que passa então a vigorar.
Em 1964, primeiro foi produzida a ruptura, depois a nova
legalidade, sob a forma do AI-1. Consumada a tomada do poder, o jurista
Francisco Campos, homem culto e competente, com longa ficha de serviços
prestados ao presidente Getúlio Vargas, tendo redigido a Constituição de 1937,
foi chamado pelo ministro da Guerra, Costa e Silva, para dar forma jurídica ao
novo regime. Após uma conversa entre ambos, Francisco Campos sugeriu que não
era necessário seguir a Constituição de então, pela singela razão de que ela
não estava mais sendo cumprida, de qualquer maneira; uma alternativa legal
seria mais condizente com a conquista do poder.
Segundo ele, o Brasil estava sendo conduzido por um novo
governo de tipo revolucionário, que, como tal, seria fonte originária de uma
nova legalidade. O novo poder era a origem mesma de uma nova legislação, não se
subordinando a qualquer outra força ou posição constitucional. Ele se
justificaria por si mesmo, bastando tão somente conferir-lhe um novo
ordenamento jurídico.
O jurista tirou seu paletó, ocupa uma escrivaninha e ao
amanhecer do outro dia o Ato Institucional n.º 1 estava redigido, com a
colaboração de outro jurista, Carlos Medeiros Silva. O governo revolucionário
passou a guiar-se por esse ato institucional e pelos outros atos que se
seguiram.
O AI-5 foi ordenado e promulgado pelo mesmo general Costa e
Silva, que nesse meio tempo se havia tornado presidente. O seu caráter
“revolucionário”, de fonte geradora de uma nova legalidade, foi marcante. O
habeas corpus foi suspenso para crimes considerados políticos, o presidente
podia suspender o Congresso, o que logo foi feito, passando a legislar ele
mesmo por decretos-leis, a censura prévia foi instaurada em jornais, revistas e
outros meios de comunicação, o presidente podia intervir em Estados e
municípios, entre outras medidas.
Logo, quando autoridades propõem um ato institucional para
conter uma eventual – e imaginária – sublevação popular à maneira das manifestações
de rua no Chile, eles estão “brincando” com uma ruptura institucional. Note-se
que eles não defendem a manutenção da ordem por via constitucional, dado que
nossa Carta Magna contempla instrumentos desse tipo, como a Garantia da Lei e
da Ordem (GLO), o estado de sítio e o estado de defesa nacional. O primeiro,
aliás, amplamente utilizado pelos governos anteriores na manutenção da ordem
pública para combater a criminalidade, sendo o exemplo do Estado do Rio de
Janeiro o mais conhecido. Observe-se ainda que todos eles, sobretudo os dois
últimos, exigem trâmites constitucionais que pressupõem sua aprovação pelo
Legislativo.
Consequentemente, a pergunta que se coloca é quem assumiria
o poder gerador de novas leis, o da nova legalidade. As Forças Armadas têm
mantido rigorosa postura constitucional, defendendo a democracia em nosso país.
Não há nenhuma sinalização anunciando uma nova atitude. O seu desempenho é
estritamente profissional, elas têm sido exemplares na defesa das instituições
republicanas. Se não são elas candidatas a artífices da nova “revolução”, só
sobrariam os que defendem a tal de “revolução cultural”, o círculo mais próximo
do presidente. Isto é, o País passaria a ser governado pela ala ideológica do
governo, fazendo tábula rasa do Congresso, das oposições, da liberdade de
imprensa, concentrando todo o poder no Executivo e em seu grupo dominante.
A reação a tais declarações foi de tal monta que um recuo
imediatamente se fez necessário. Não por virtude, mas pela pequena adesão
suscitada, confinada aos núcleos digitais do bolsonarismo. Sem apoio,
evidentemente, nenhum “ato institucional” seria possível, nem na opinião
pública, nem na ação dos militares. Na verdade, foi um tiro no pé, expondo o
vigor das instituições democráticas em nosso país.
O problema, porém, persiste. O mesmo governo que alberga
posições radicais e antidemocráticas desse tipo é o que apresenta um arrojado
programa de reforma do Estado mediante várias propostas de emenda
constitucional e projetos de lei, trazendo à tona uma agenda liberal. Questões
centrais são trazidas à discussão, sem medo das patrulhas ideológicas da
esquerda. Se tudo o que está sendo proposto for aprovado pelo Congresso,
estaríamos diante de uma verdadeira “revolução”, ao reconfigurar as relações entre
a intervenção estatal e a economia baseada em relações concorrenciais, e não de
“compadrio”.
O risco, porém, consiste em que a “revolução cultural” pode
terminar por contaminar as transformações liberais. Em muito ajudaria o País o
presidente Bolsonaro tomar uma decisão, posicionando-se firmemente pelas
transformações econômicas e pelo redesenho do Estado, imprescindíveis para
todos os cidadãos. A permanência da tensão entre ambas só ajuda os que
pretendem manter o status quo.”
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