“De como o óbvio é revolucionário
Por Fernão Lara Mesquita
Domingo agora, J. R. Guzzo escreveu neste jornal que “a
igualdade não é um direito, é o resultado do que o cidadão aprendeu”, que “é
inútil querer que as pessoas tenham igualdade nos resultados quando não são
iguais nos méritos” e que “não há como ser igual nos méritos se o sujeito que
sabe menos não teve oportunidades iguais de aprender as coisas que foram
aprendidas pelo sujeito que sabe mais”. Conclusão: “ainda não foi inventada no
mundo uma maneira mais eficaz de concentrar renda, preservar a pobreza e
promover a desigualdade do que negar ao povo jovem uma educação decente”.
Mas como arrancar a educação pública brasileira dos dois
atoleiros aos quais está presa, a corrupção inerente ao ambiente estatal e o
serviço a um projeto de poder? Ontem, falando de corrupção, Modesto Carvalhosa
lembrou nesta página que “um fenômeno sistêmico é o que cria, ele próprio, sua
continuidade, permanência, persistência e expansão”. Mas pode haver uma versão
virtuosa disso. Eu tenho fascínio pela instituição da eleição direta do school
board das escolas públicas em todos os países de colonização inglesa. É a peça
mais básica da democracia moderna, que é a que foi reinventada por eles. É ali
que se dá a intersecção mais concreta do público com o privado e que se define,
no nível mais próximo do cidadão comum, a relação hierárquica que há entre ele
e o seu representante eleito, de modo a criar a sua própria continuidade.
Sendo a base de tudo na democracia moderna a necessidade de
ela ser “representativa” e o sistema distrital puro de eleição a única maneira
sem tapeações de prover essa representação de modo aferível, preto no branco, o
bairro, a menor célula do sistema, elege obrigatoriamente entre candidatos que
moram nele (pais de alunos) o conselho gestor da escola pública local. Nos
Estados Unidos esses boards têm, tipicamente, sete membros para que não haja
empate em suas decisões, com duas “metades”, uma de três outra de quatro
membros, eleita a cada dois anos, para mandatos desemparceirados de quatro
anos. Como todo funcionário eleito, também estes estão sujeitos a recall a
qualquer momento que seus eleitores se sentirem mal representados. Esse
conselho tem por atribuição contratar e demitir o diretor da escola e aprovar
ou não os seus orçamentos e planos de voo anuais.
A esta altura os leitores ainda sujeitos ao complexo de
vira-latas já estão pensando como o brasileiro das favelas ou lá dos fundões
poderá mandar na educação (de seus filhos) com bons resultados. A função do
school board, assim como a da democracia como um todo, não é imprimir
sofisticação aos currículos, é estabelecer o filtro contra a mais mortífera de
todas as doenças que acompanham a humanidade ao longo dos tempos neste vale de
lágrimas, que é a corrupção pelo poder, e tornar a escola pública “orientada
para o cliente”. Hoje, com as exceções que confirmam a regra, ela está
orientada para servir a seus servidores e manter para sempre nas mãos dos
próprios privilegiados o controle sobre a distribuição de privilégios pelo
Estado, que é ao que se resume, despido de sua fantasia século 20, todo o
blablablá em torno da estatização ou não do que quer que seja.
Qualquer pai terá condições de saber quem são as pessoas
mais capacitadas para fazer parte desse board na sua comunidade e, sendo o voto
secreto, de defender-se de pressões indevidas. E qualquer ser humano em poder
de suas faculdades saberá avaliar a razoabilidade ou não de um orçamento a
partir da segunda vez que tiver de tratar do assunto. Além disso, como todos,
esse sistema gera os seus próprios meios de tornar-se “sistêmico” e
autorreproduzir-se: centros de apuração e difusão de melhores práticas, cursos
de aperfeiçoamento de membros de school boards, etc.
Nenhum prejuízo colateral será maior que o de manter o
controle das verbas e das decisões na área de educação nas mãos de quem terá o
poder de transformá-las no próprio salário e o de deixar a avaliação de quem
deve preparar um país inteiro para a competição global a indivíduos que não
têm, eles próprios, de competir por seu lugar ao sol. Ontem mesmo, aliás,
editorial na página ao lado desta constatava que há mais professores do ensino
básico sendo formados no Brasil de hoje, onde eles já são 3,1% da força de
trabalho e 20% das mulheres com ensino superior, que alunos a demandá-los. Por
que seria, se os salários são tão baixos? Porque o magistério público atrai
pessoas de famílias paupérrimas e, no quadro da miséria nacional, ser professor
prestando um vestibular de Pedagogia é um modo mais fácil que o vestibular de
Medicina, por exemplo, para disputar uma posição de segurança vitalícia num
emprego estatal.
Não é, portanto, aumentando salários num ambiente regido
pela regra da isonomia – aquela que afirma: “eu merecerei ganhar mais sempre
que outra pessoa fizer por merecer ganhar mais” – que se vai resolver o
problema da qualidade da educação básica no Brasil. E a solução passa
obrigatoriamente pelo rompimento com a “mentira analítica”: a crítica do
sistema tem de ser feita pelo consumidor, e não pelo fornecedor de educação
pública, como geralmente acontece até mesmo nas bancas (quase exclusivamente
compostas por professores de universidades públicas) que os jornalistas
convocam para debater o problema.
Nada disso, porém, pode ocorrer isoladamente. Se quisermos
viver numa democracia, o school board é só a peça mais básica. Um certo número
de distritos eleitorais escolares (bairros) comporá um distrito eleitoral
municipal, um conjunto destes fará um distrito estadual e outro múltiplo deles
fará um distrito federal, que elege um deputado federal, todos eles diretamente
atrelados a eleitores específicos e sujeitos a recall, ou seja, submetidos à
mesma meritocracia sob a qual vivem os seus representados.
Não é só o sistema de educação pública. O Brasil inteiro não
funciona porque a avaliação e a condição de permanência, seja no emprego, seja
no poder públicos, é absolutamente independente da “satisfação do cliente”.”
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