“Agora eu se consagro
Por Pedro Fernando Nery
Eram os 39 do segundo tempo, o Corinthians perdia de 1 a 0
para o Palmeiras. Ataque corintiano, a bola sobrou para Bruno Octávio. De muito
longe da área, o jogador do Corinthians tentou resolver sozinho, chutando dali
mesmo e isolando a bola. O narrador Milton Leite não se conteve, chamou o
momento de patético e lançou um bordão popular nos anos seguintes: agora eu
“se” consagro! A expressão ironizava o jogador fominha que, empolgado e
imaginando um momento de glória, acabava fazendo uma tolice.
A decisão sobre a Loggi na sexta é um desses momentos de
nossos operadores do Direito que lembram o “agora eu se consagro”. A startup
brasileira é espécie de Uber de entregas, com plataforma que conecta milhares
de motoboys (cadastrados como microempreendedores individuais) a clientes. A
Justiça do Trabalho determinou que todos sejam contratados, mandando ainda a
empresa disponibilizar estacionamento e pagar R$ 30 milhões de multa. A razão
seria “dumping social”: o valor estipulado equivale a todo o faturamento de
2018 (menos que os R$ 200 milhões pedidos pelo Ministério Público do Trabalho),
autor da ação. Pode ainda ter de pagar R$ 10 mil por motoqueiro que não for
contratado via CLT.
O ramo trabalhista é talvez o com mais adeptos do movimento
“agora eu se consagro”, com juízes e procuradores voluntaristas produzindo
decisões deletérias. A turma do agora eu se consagro adora chavões como “o
trabalho não é mercadoria” (em negrito na decisão do caso da Loggi) e “cada
vida não tem preço” (presente).
Focaremos nas possíveis consequências econômicas da decisão,
antecipadas pela própria juíza, quando lembra que o cadastro na Loggi pode ser
“um patamar melhor do que eventual desemprego ou miséria”. Quanto à presença ou
não de vínculo empregatício, registra-se que a decisão peita o entendimento do
STJ, que em setembro decidiu em caso semelhante que a situação é de autônomo,
não de empregado. A juíza do Loggi justifica a decisão com base na reforma
trabalhista, que passou a permitir o contrato por hora (intermitente): mas vale
registrar que o intermitente é convocado pelo empregador, enquanto os usuários
de aplicativos escolhem quando logar nas plataformas, e por quanto tempo ficar.
A contratação pela CLT implica custo muito maior do que o
contrato do MEI [Micro Empreendedor Individual]. O valor pode ser mais que o
dobro, considerando encargos previdenciárias e trabalhistas. É ingênuo supor
que o lucro dos investidores arcará com a mudança. A empresa tentará repassar o
custo para os consumidores e, o que não conseguir, para os motoboys (e é fácil
para os clientes substituir serviços como delivery de sanduíches).
Supondo que a regra valesse para as demais plataformas, é
intuitivo que os motoqueiros – muitos que hoje ganham mais do que a renda média
nacional – passariam a ter rendimentos líquidos menores. Haveria restrições a
novas vagas e muitos seriam desligados, voltando ao desemprego de que tantos só
conseguiram sair pelo colchão dos aplicativos. A comparação com a
jurisprudência da Califórnia reconhecendo vínculo é inoportuna: a região tem
desemprego 3 vezes menor, renda 5 vezes maior e o vínculo empregatício é em uma
legislação trabalhista das mais flexíveis do mundo. As consequências aqui serão
piores. (Em tempo: estudo de big data de outubro no Journal of Political
Economy identificou que a flexibilidade da plataforma traz ganho equivalente a
40% da renda para motoristas da Uber, em relação às alternativas).
A ironia do “trabalho não é mercadoria” que é exatamente
como produtos guardados num armazém que ficam a multidão de desempregados
vítimas dos juízes do agora eu se consagro. Mês passado um ex-presidente da
associação de juízes declarou inconstitucional a MP do Verde Amarelo, que nem
estava em vigor. Mais cedo, o TRT-MG reconheceu vínculo entre motoristas e
Uber, e a decisão (“histórica”) foi rapidamente traduzida para inglês e
espanhol.
*
No sábado, o MEI foi visto como fonte de direitos para a
turma que malhou a reforma trabalhista, quando artistas foram excluídos do
alcance do microempreendedor individual. Atrizes globais que posaram com
carteiras de trabalho em protesto à flexibilização de 2017 foram rápidas em
criticar o fim do MEI para a classe. Deputadas da esquerda também apontaram o
risco de desemprego para artistas, já que as alternativas são o contrato via
CLT ou autônomo tradicional, mais caro. O MEI garante direitos previdenciários
a um custo menor para contratantes com menos tributos ao contratado. A decisão
acabou revogada: o lacre ficou.”
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