“Na democracia instituições não morrem, suicidam-se
Por Francisco Ferraz
Quando o nome dos ministros do Supremo Tribunal Federal
(STF) é conhecido pelo povo em todo o País; quando se consegue antecipar o voto
dos ministros sem errar; quando ministros se agridem oralmente, usando
linguagem vulgar nas sessões; quando não hesitam em atropelar competências, a
comprometer a segurança jurídica; isso só pode significar que o STF está numa
trajetória equivocada de afirmar a sua superioridade política sobre os demais
Poderes e está irreversivelmente enredado na política... É um desastre
anunciado que já se instalou na Corte: a política está expulsando o Direito do
tribunal.
O fato inegável é que o STF tem competências que o
diferenciam do Executivo e do Legislativo. O poder de decretar a
inconstitucionalidade de um diploma legal é exclusivo dele, afeta os outros
dois Poderes sem ser por eles afetado. O STF não é um órgão eleito pelo povo,
não está sujeito a mandato fixo, salvo por idade, e tem seus ministros
indicados pelo Executivo e aprovados pelo Legislativo. Os freios da escolha
popular ou do mandato com prazo fixo não o atingem. Por fim, é a última
instância não só do Judiciário, como do sistema político em matéria jurídica.
Se o Judiciário tem esse poder que pode levá-lo a
considerar-se superior aos outros dois, este também é o seu calcanhar de
Aquiles.
Tribunais superiores, em regra, acautelam-se no exercício
desses poderes. Não pretendem ser populares, detestam as especulações
jornalísticas, proíbem fotografia, gravação ou filmagem de suas atividades, não
dão entrevistas e evitam a todo o custo envolver-se na política. Preservam religiosamente
sua discrição e sua independência, o mistério e a magia da instituição. Sabem
que o maior inimigo da legitimidade da Corte é o envolvimento político. São 11
ministros que sabem qual o custo de tão elevada função: evitar a política,
manter sob reserva suas características pessoais e evitar a popularidade, que
gera expectativas e pressões.
Nosso Supremo, guardadas as diferenças entre os sistemas
políticos de outras nações, tem se mantido dentro desses parâmetros
comportamentais a maior parte do tempo. Os casos desviantes sempre existiram,
mas divisão por motivos políticos, com formação de blocos, controles de
fidelidade e a ousadia de submeter a segurança jurídica a interesses políticos
não faziam parte da história do STF.
Então, por que o STF cada vez mais se envolve em decisões
políticas? Porque a política está expulsando o Direito do tribunal?
O próprio ex-presidente Lula respondeu a essa pergunta
quando da divulgação dos telefonemas gravados pelo então juiz Sergio Moro.
Neles o ex-presidente exigia de seus companheiros que “cobrassem” dos ministros
o apoio de que estava necessitando, a revelar que a nomeação deles implicava a
contrapartida em votos no plenário. Se a lógica do aparelhamento político
precisava de confirmação, o ex-presidente encarregou-se de fornecê-la.
O ingresso da política no STF foi também coadjuvado pelo
próprio tribunal quando liberou a transmissão das sessões pela TV. O público
não acompanharia sessões técnicas, mas o faria nas sessões em que estavam em julgamento
questões políticas.
Mas a TV no STF teve mais consequências. Ministros
subitamente se tornaram figuras públicas. Seus acertos, como seus erros,
passaram a ser vistos por todos, choveram convites para eventos, jornalistas
estavam sempre em busca de entrevistas, sua presença nos noticiosos era
frequente. Ministros, sendo 11, eram mais presentes na mídia do que as centenas
de deputados e dezenas de senadores. Nem mesmo os presidentes das Casas
Legislativas tinham cobertura de mídia tão intensa. Conflitos logo se tornaram
públicos, o que exigia dos contendores coerência na continuidade da desarmonia.
A TV e a notoriedade pública envolveram os ministros do STF,
atraindo-os para um protagonismo político para o qual não estavam preparados,
mas cuja atração se revelou irresistível. Se a política entrou no STF, em boa
parte foi porque a TV entrou na Corte.
Houve ainda um terceiro fator na politização da Corte. Como
a ação da Lava Jato decorria numa comarca, sob a autoridade de um juiz
singular, a investigação desembocava num processo e o processo conduzia ao
julgamento, à sentença e, inevitavelmente, a recursos a instâncias superiores.
A leitura dos que já estavam inoculados pela popularidade era de que um juiz de
primeira instância havia aplicado uma capitis diminutio nos juízes do STF.
De início não se percebeu a desproporção que decorria da
entrega do maior caso de corrupção da História do País a um jovem juiz
singular. Não era uma ação de governo investigando suas entranhas, conduzida
por autoridades de espectro nacional. Era uma ação em que o governo do País e
suas autoridades surgiam como suspeitos e, como réus, ficaram sujeitos ao
processo penal. Políticos, empresários e servidores da mais alta hierarquia
acabaram submetidos à autoridade de um jovem juiz de subseção. Restaria ao STF,
então, julgar recursos em matéria de Direito, porque em matéria de fato não
havia mais o que fazer. E tudo o que surgia era resultado da ação de um juizado
singular. Foi muito difícil para alguns ministros aceitar essa aparente
humilhação.
Assim, Lava Jato e mensalão seguiram roteiros opostos quanto
à sua origem: a Lava Jato deslocou-se de baixo para a cúpula do sistema
político; o mensalão, ao contrário, nasceu e se extinguiu no STF.
Foi o mensalão televisionado, entretanto, que introduziu os
ministros no mundo da política e do espetáculo, cujo ingresso ocorre com
facilidade, até mesmo por descuido, mas cuja saída não se dá sem pagar um preço
proibitivo na majestade institucional da Corte e naquele “terrível poder” dado
ao homem para julgar o homem. Fácil é entrar no jogo político, difícil sair;
impossível sair ileso e recuperar a pureza de outrora.”
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