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sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Acesso à dignidade





“Acesso à dignidade
      
Por Ana Carla Abrão

É inacreditável que um país como o Brasil ainda não tenha atingido a universalização no acesso ao saneamento básico. Pior do que isso, deveria ser inaceitável que apenas pouco mais da metade da população brasileira tenha acesso à coleta e tratamento de esgoto ou que mais de 100 milhões de brasileiros não tenham o seu esgoto nem sequer coletado. Mesmo em São Paulo, Estado mais rico do País, ainda não atingimos a universalização. Os dados do Painel Saneamento Brasil, compilados pelo Instituto Trata Brasil, mostram que, ainda hoje, mais de 10% de paulistas vivem sem acesso à coleta e quase 40% não têm tratamento de esgoto. Se olharmos os números de Roraima, que detém alguns dos piores indicadores, estamos falando de 60% da população sem acesso nem sequer à coleta de esgoto. Tratamento ainda é um sonho distante.

Há que se aplaudir, portanto, a aprovação do texto-base do novo marco de saneamento pela Câmara dos Deputados. O projeto foi aprovado com 276 votos a favor e injustificáveis 124 votos contrários. Ainda que de forma tardia, avança-se na direção de atrair capital privado para os investimentos que urgem no setor de saneamento no Brasil. Afinal, as evidências mostram que o modelo predominantemente estatal está exaurido e será incapaz de promover a necessária universalização. Além disso, a falta de disponibilidade de recursos públicos, num país refém de gastos obrigatórios não necessariamente bem alocados, afasta qualquer perspectiva de se suprir, via investimentos públicos, as necessidades de recursos nesse setor. Daí a importância de se estabelecer as bases institucionais que gerem atratividade, acesso e estabilidade de regras que vão alavancar os investimentos privados para o projeto de universalização dos serviços de saneamento no Brasil.

O ponto alto do projeto é a introdução da obrigatoriedade dos processos de concorrência nas contratações de serviços na área por parte de Estados e municípios. Até aqui, são as empresas estatais que dominam o setor de saneamento, isentas que são de processos licitatórios competitivos. São os chamados contratos de programa que ganharam um último fôlego. Com a futura obrigatoriedade das licitações e a consequente vedação dos contratos de programa, a tendência é que haja aumento da participação de empresas privadas no mercado e, consequentemente, dos volumes investidos. A expectativa do governo – algo otimista – é de investimentos na casa dos R$ 700 bilhões até o fim de 2033, ano em que deverão ser atingidas as metas de 90% de acesso à coleta e tratamento de esgoto e 99% de acesso à água potável.

O novo marco também prevê a regionalização na prestação dos serviços de saneamento e possibilita que a oferta seja feita a blocos de cidades. A regionalização e o emblocamento deverão gerar ganhos de eficiência e aumentar a atratividade da prestação de serviços em municípios menores, levando a uma expansão mais rápida da oferta não só dos serviços de coleta e tratamento de esgoto, mas também do abastecimento de água potável e dos programas de limpeza urbana e reciclagem de lixo.

O projeto aprovado é um avanço, não restam dúvidas. Chama a atenção, contudo, a expressiva votação contrária. Vários dos mais de cem que foram contra o projeto usaram o argumento de que água não se privatiza. Deixando de lado a falta de profundidade características dos clichês ideológicos – ou de outros motivos não nomináveis – é no mínimo questionável que mulheres e homens públicos, que foram eleitos para defender os interesses da população, ajam ignorando a situação precária que o atual modelo estatal nos legou. Junte-se a isso a realidade fiscal corrente e os resultados das privatizações, em particular do Sistema Telebrás no governo Fernando Henrique Cardoso, e não há como justificar ser contrário a um marco legal que fomenta o investimento privado no setor.

O Brasil prescinde de resultados. Os 124 deputados que votaram contra a universalização dos serviços de saneamento deveriam, em vez de defender a manutenção de uma situação desumana e indigna, usar seus votos – e seu espaço – para defender o fortalecimento das agências reguladoras. Se elas funcionarem de forma técnica, independente, exercendo sua prerrogativa de garantir que os serviços sejam prestados com foco em qualidade, acesso e preços justos, elas estarão, juntamente com uma nova lei, reforçando os objetivos e as metas.

Afinal, acesso a serviços de saneamento significa elevar os índices de aprendizagem, reduzir os gastos com saúde pública e melhorar as condições de vida de milhares de brasileiros. Até porque, saneamento significa, acima de tudo, acesso à uma vida digna. Tão simples e básico quanto isso.”

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