“Colapso de nível 1
Por Fabio Giambiagi
Richter é o nome de uma escala que serve para medir a
intensidade sísmica e segue uma métrica ascendente. Terremotos em torno de 5
nessa escala são comuns, com grau relativamente baixo de danos físicos e perdas
humanas. A escala vai sendo maior à medida que a numeração aumenta. Terremotos
acima de 8 tendem a ser devastadores e são eventos raros, desses com poder de
causar milhares de mortes.
Usando essa analogia e sem os componentes científicos que
normatizam o que se sabe sobre tais catástrofes, podemos criar uma escala
específica, indo de 1 a 4, para medir as situações de colapso que não sejam
naturais, e sim causadas pela ação do homem sobre o curso dos países. Mantendo
a ideia de que numeração maior implica maior drama, mas com variedade menor de
gradações, podemos pensar em termos de quatro níveis relacionados a diferentes
intensidades do problema e à carga de seriedade a ele associada.
Assim como nos últimos cem anos houve poucos terremotos de
grau muito elevado, também se contam nos dedos as situações de países que
poderíamos definir como sendo de “nível 4 de colapso”. Trata-se de situações em
que, por uma razão ou outra, se instaurou o caos ou uma situação de conflito
extremamente aguda, relacionada com o desaparecimento do Estado nacional e, em
geral, com situações de guerra. Podemos pensar em casos-limite, como a Somália,
a Bósnia quando estava em guerra, nos anos 1990, ou, mais recentemente, a Síria.
Nesses casos a vida vira um verdadeiro inferno.
O “nível 3 de colapso” não chega a configurar uma situação
tão grave quanto a anterior, mas envolve contextos em que a economia passa a
ter problemas gravíssimos, os elos da corrente de pagamento sofrem a incidência
de fatores anômalos e o dia a dia se complica enormemente para os habitantes de
um país. Para entender conceitualmente o que significa, podemos pensar em casos
como a Venezuela hoje. Não é um país que esteja em guerra, como a Síria, há
ainda algum espaço de convivência entre as pessoas, persistem traços de normalidade
no dia a dia, etc. Porém a vida diária torna-se crescentemente complicada,
podendo virar um suplício. No caso citado, os produtos desaparecem dos
supermercados, o peso médio das pessoas cai por falta de alimentação, as
famílias perdem horas diariamente para conseguirem adquirir bens essenciais
quando os pontos de vendas recebem algum carregamento, as mortes por violência
alcançam proporção assustadora; etc. A Argentina viveu alguns meses flertando
com situação desse tipo, na hiperinflação com Raúl Alfonsín, em 1989, e no fim
da convertibilidade, em 2001, mas em ambas as situações acabou apenas “batendo
na trave”.
No “nível 2 de colapso”, os casos são mais numerosos.
Conheci um deles de perto, muitos anos atrás. Em 1989 participei de missão
oficial à Nicarágua. Recém-saída da guerra civil, havia traços de normalidade
no funcionamento do país. Porém, mais de 15 anos depois do terremoto que
devastara a cidade, Manágua parecia uma cidade fantasma, com o entulho dos
prédios derrubados ainda presente em quantidade absurda de quarteirões, uma
proporção terrível de homens sem braços ou pernas como consequência da guerra,
a hiperinflação começando a frequentar o noticiário, etc. A Argentina no final
dos anos Kirchner também estava começando a ingressar nesse terreno, com as
empresas com dificuldades enormes para conseguir dólares para operar, o governo
já sem conseguir se financiar, o órgão oficial de estatísticas produzindo taxas
de inflação “desenhadas”, estatísticas em geral completamente “maquiadas”, etc.
Finalmente, no nível 1 se inserem países com um quadro de
degradação contínua, ausência de perspectivas de progresso, perda dos laços de
solidariedade entre as pessoas, esgarçamento da sensação de pertencimento a um
mesmo espaço geográfico e emigração incipiente daqueles que têm a possibilidade
de procurar outros caminhos em países que possam ser vistos como tendo melhor
futuro. O dia a dia se torna mais difícil, sombrio, duro e triste para todos –
e às vezes flerta com a barbárie. É o que eu tenho denominado de “suicídio em
slow motion”.
O Brasil está a anos-luz de uma situação de guerra civil
como a da Síria e nunca estivemos muito perto de uma situação como a da
Venezuela nos dias de hoje. Porém tivemos nos últimos anos elementos que nos
poderiam caracterizar como estando associados a uma situação de “nível 1 de
colapso”. Pensemos no tipo de notícias, com graus variados de gravidade, que
apareceram na década atual: greve de policiais no Espírito Santo, com mais de
cem mortes num fim de semana pelo fato de a população ter ficado à mercê dos
bandidos; rebeliões prisionais no Norte e no Nordeste, com dezenas de presos
decapitados; queda de um viaduto na cidade de São Paulo; seguidas destruições
provocadas por chuvas no Rio de Janeiro, uma das vezes com um engarrafamento
monstro que deixou milhares de motoristas parados durante cinco ou seis horas,
sem poderem avançar um centímetro; tragédia de Brumadinho, associada a uma
fiscalização grosseira que fez que o que deveria ser acompanhado por dezenas de
funcionários ficasse sob a responsabilidade de um quadro de fiscais
ridiculamente minúsculo, num Estado com a quantidade de barragens e a extensão
de geográfica de Minas Gerais, etc. O denominador comum de todos esses casos é
a falência do Estado – este se tornou disfuncional. Mais que de um Estado menor,
o Brasil precisa de um Estado que funcione: regulação, fiscalização, certas
obras urbanas, etc., continuarão sob sua responsabilidade. A reforma do Estado
precisa se tornar prioridade, o que envolve a reformulação de carreiras, a
redefinição de funções e o melhor treinamento das pessoas. Trata-se de algo que
vai além da estabilidade e do crescimento. É uma tarefa hercúlea.”
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