“Uma causa muito nobre e seus infectos parasitas
Por José Nêumanne
Quando Samuel Johnson, tido e havido como o intelectual por
excelência na História do Reino Unido, cunhou sua mais famosa entre célebres
sentenças definitivas, “o patriotismo é o último refúgio de um canalha”,
referiu-se especificamente ao próprio partido político, o Patriotas. O sábio
sentia-se incomodado com a invasão da sigla por oportunistas, que se
aproveitavam para defender não a causa patriótica a que se referia a
denominação, mas diversas maneiras de se aproveitarem do nacionalismo para
negócios e interesses próprios. Os movimentos anticolonialistas e o espírito
bélico das duas guerras mundiais no século 20 transformaram sua frase em libelo
contra o nacionalismo, usado com êxito por nazistas e fascistas.
Essa discussão despertada pelo post de Carlos Bolsonaro é o
momento de, sem abrir mão das conquistas civilizatórias da democracia (governo
do povo), parodiar a sentença do século 18 na “pérfida Albion” no debate
político aqui e agora. A primeira reação provocada pela crítica exposta em
redes públicas é sobre poder, relevância e respeito que se deve, ou não, ao
autor. Ao lê-la, este escriba lembrou-se de uma anedota clássica do século 20.
Diz-se que Pierre Laval, primeiro-ministro da França, ansioso para evitar que
os alemães invadissem seu país, sugeriu a Josef Stalin que ganhasse apoio dos
católicos aproximando-se do papa Pio 12 para fazer frente a Adolf Hitler.
Stalin teria respondido: “O papa?! E quantas divisões (militares) tem o papa?”.
Ao ouvir a história, Eugenio Pacelli teria respondido: “Diga a meu filho Josef
que ele encontrará minhas divisões no céu”. O filho “02” do presidente da
República é um general sem bastão de um exército desarmado de seguidores em
redes sociais. Um Aedes aegipti tem poder mais demolidor sobre o regime do que
ele.
É mais nociva para nossas instituições democráticas sua
falta de representatividade do que arroubos da prole do capitão, esta ou a
ameaça de fechar o Supremo Tribunal Federal (STF) com cabo, soldado e jipe.
A sensação de que a democracia no Brasil é o último refúgio
dos corruptos não resulta da impaciência de um vereador nota zero na Câmara do
Rio, nem das grosserias do pai dele contra a alta comissária dos Direitos
Humanos nas Nações Unidas e Brigitte Macron. Mas da insidiosa mistura que os
pseudoarautos do chamado governo do povo, pelo povo e para o povo fazem de seus
interesses pessoais e de classe com a vontade popular. A Câmara dos Deputados –
composta por um sistema de proporcionalidade que faz o voto de um paulista que
mora no Acre 13 vezes mais poderoso do que um acriano eleitor em São Paulo –
atua como um clube fechado de líderes de partidos, e não como o poder da
cidadania.
Fala-se muito em “democracia representativa” no Brasil, mas
a verdade é que, da forma como ela tem funcionado na prática, está mais para
uma “cleptocracia partidária”. A distorção matemática, que impede a verdadeira
representação do cidadão, relegada ao Executivo de União, Estados e municípios,
tem um filhote infame na instituição que exerce o poder de fato no tal
“presidencialismo de coalizão”. A Câmara tem 30 bancadas, recorde na História
da República. Isso provoca um distanciamento crucial das votações em relação ao
cidadão. Ao talante de seu chefão, leis de importância capital para a lisura e
a consequente reputação da Casa são submetidas a votações simbólicas pelos
líderes das bancadas, que decidem em alinhamento com as direções partidárias,
sem prévias audiências públicas.
O texto da lei contra o abuso de autoridade, por exemplo,
foi aprovado no Senado e ficou dois anos na Câmara, até passar em rito sumário
e votação só de líderes. Deputados presentes tentaram exigir do presidente da
sessão, Rodrigo Maia, verificação de quórum para fazer votação nominal, mas ele
impôs sua vontade pessoal, jogando a democracia no lixo em nome dela própria.
Outro soit-disant arauto da democracia, Davi Alcolumbre,
tentou golpe similar na semana passado para aprovar no Senado projeto ainda
mais infame, em teoria, de reorganização dos partidos, mas teve de adiar para
esta pela insistência de testemunhas de seu cinismo. Esse projeto autoriza
parlamentares acusados de corrupção a usar recursos públicos para remunerarem
advogados e dispensa partidos de pagarem multas por infrações à lei eleitoral.
Os deputados da esquerda e do Centrão, com ajuda de parte da base governista,
lutam para aumentar o fundo eleitoral para absurdos R$ 3,7 bilhões, aprovaram a
permissão para os partidos pagarem passagens aéreas para filiados ou não com
dinheiro público e retiraram as contas bancárias dos partidos dos controles da
Receita Federal de Pessoas Politicamente Expostas. Um execrável descalabro!
Davi Alcolumbre, que, acumpliciado com o relator Roberto
Rocha (PSDB-MA), arquivou o inquérito sobre a fraude na eleição que o pôs na
presidência do Senado, em que foram computados 82 votos depositados por 81
senadores, e mantém a Casa sem Comissão de Ética, fez veemente defesa da
democracia. Rodrigo Maia, eleito com 70 mil votos, no fim da fila da
proporcionalidade, e feito presidente da Câmara com apoio do PCdoB ao DEM,
também não perdeu a oportunosa ensancha para defender a nobre causa, da qual
ele é um dos mais oportunistas parasitas.
O regime dos iguais foi desagravado pela procuradora-geral
da República, Raquel Dodge, que se julga preterida por Bolsonaro, apesar de não
ter figurado na lista tríplice dos colegas, e pelo decano do STF, Celso de
Mello, que, sem condições de saúde de dar expediente, não cede o alto posto. Na
Câmara dos Deputados, Eduardo socorreu o irmão “02” com a frase célebre “a
democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”, da lavra
de Winston Churchill, primeiro-ministro britânico durante a 2.ª Guerra Mundial,
ou “Wilson Church”, em sua prova rara de amor e erudição.”
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