“A lógica do destempero
Por DENIS LERRER ROSENFIELD
As manifestações intempestivas do presidente da República,
suscitando confrontos permanentes, aparecem como formas de descontrole, quando
são, na verdade, lógicas segundo sua arte de governar. São coerentes não apenas
com o seu estilo pessoal, mas também, e sobretudo, com sua forma de fazer
política.
Somente agora completa o novo governo sete meses, porém
tem-se a impressão de que alguns anos já transcorreram. Discute-se a sucessão
presidencial como se as eleições já estivessem ali adiante, expondo um quadro
de envelhecimento precoce do governo. Nestes poucos meses ele ainda não disse
ao que veio, mas novas eleições já entraram em pauta.
A duras penas completou o novo governo a aprovação da
primeira rodada de votações da reforma da Previdência na Câmara dos Deputados.
O processo, provavelmente, não se concluirá no Senado antes de outubro, no que
se configura o início de um duro processo de retomada do crescimento. No
entanto, o debate público é regido por questões manifestamente menores, como
liberação de cadeirinhas para crianças nos automóveis, porte de fuzis, nomeação
de um filho para embaixador, acusações de que o pai do presidente da OAB teria
sido “justiçado” por seus “companheiros” durante o regime militar, e assim por
diante. Há uma evidente confusão entre o principal e o acessório. A comunicação
social do presidente é manifestamente falha. Só agrada aos fiéis e aos já
convertidos.
Note-se que o governo, em vez de se beneficiar dos seus
feitos – como o começo da aprovação da reforma da Previdência, a lei sobre o
direito à legítima defesa (depurada de seus excessos), a concessão de
aeroportos, o debate sobre a necessidade das privatizações, o início de
desburocratização administrativa via eliminação de decretos, portarias e
conselhos –, se perde em pautas claramente secundárias, ofuscando o que faz
pelo País. Há uma inversão: o principal sai de foco e entra em seu lugar o
subsidiário.
Qual é a lógica? Certamente não é a arte de governar, pois
esta exigiria uma atenção às políticas públicas voltadas para tirar o País do
marasmo de uma economia que patina e de um desemprego que aterroriza milhões de
brasileiros. A insegurança pessoal ronda boa parte da população. Em seu lugar
entra um conjunto de questões menores que diz respeito à concepção política dos
bolsonaristas, voltada para o embate permanente, sempre à caça do inimigo real
ou imaginário, não importa. O que conta é a “existência” do inimigo, real ou
não.
Quando o presidente confronta opositores, logo tomados como
inimigos, logo o faz sob a forma do embate, como se ele próprio estivesse em
questão, como se estivesse sendo atacado. Qualquer ocasião é aproveitada
segundo sua intuição dos dividendos que poderá extrair do confronto. Precisa do
embate para fortalecer a própria posição, sentindo-se ameaçado. Tal processo
funcionou muito bem durante a campanha eleitoral, particularmente propícia para
a “destruição do inimigo”, no caso, o PT. Deixa, porém, de funcionar quando se
aplica à arte democrática de governar, baseada na negociação e na composição
com os adversários.
Tomemos o caso do confronto com o presidente da OAB. Em
aparente descontrole, o presidente fez acusações, sem nenhuma prova, ao pai do
dr. Felipe Santa Cruz, procurando criar uma instabilidade no interlocutor.
Tratou-se de um ato gratuito, fora de contexto, sem nenhuma compaixão. A moral
foi para o espaço. A liturgia do cargo foi abandonada. Suscitou um problema que
não deveria sequer ter sido levantado. Por que o fez?
Procurou trazer para o debate político a questão do
“justiçamento” dos que participaram da luta armada para a instauração do
socialismo/comunismo no Brasil. Ressalte-se: não lutaram pela democracia. Eram
“companheiros” que não mais concordavam com o uso da violência, que discordavam
ou, simplesmente, pretendiam voltar a uma vida normal. Eram tidos por
“suspeitos” ou ”traidores”. Foram “julgados” por “tribunais populares” e
sumariamente assassinados. Tais casos, porém, não foram investigados pela
Comissão da “Verdade”, por contrariarem a narrativa de que a “esquerda” seria
“vítima” e lutava pela “democracia”. Acontece que o caso específico do pai do
presidente da OAB não se enquadra nesse tipo de fato, tendo sido atestada sua
morte, seu “desaparecimento”, nas mãos de órgãos do Estado.
Ora, o presidente, ao suscitar um problema histórico e mal
aplicá-lo ao caso em questão, trouxe a entidade dos advogados para o embate
político, realçando seu perfil de esquerda e colocando-a como “inimiga”, na
esteira de outros ataques ao PT. Ou seja, o presidente precisa do PT e da
esquerda em geral para se justificar, para manter em movimento o seu embate
político, pois é essa narrativa que o seu grupo pensa ser a sua forma de
sustentação. Se 2022 é o horizonte, é necessário que sua narrativa seja
preparada desde já. O “inimigo” deve estar agora presente. Se o PT não
existisse, seria necessário criá-lo.
Na verdade, o inimigo real dos bolsonaristas não é o PT, mas
o centro do espectro partidário, que se pode apresentar nas próximas eleições
em figuras como o governador João Doria ou o apresentador Luciano Huck. Eles
são os alvos ocultos. Pense-se, por hipótese, que os bolsonaristas representam
em torno de 30% dos eleitores e o PT e a esquerda, outros 30%. O embate entre
os dois grupos favorece ambos, excluindo terceiros. O presidente Bolsonaro está
voltado para o fortalecimento de seu eleitorado, de seus fiéis, apostando que o
adversário num eventual segundo turno seria o PT. Suas chances eleitorais
seriam grandes. Se, contudo, o PT não tiver condições de chegar ao segundo
turno, entrando em seu lugar Doria ou Huck, o presidente estaria seriamente
ameaçado.
Não há incontinência verbal, mas a lógica de um projeto de
poder, muito bem pensada.”
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