“A tradição da mentira no Brasil
Por Fernão Lara Mesquita
No editorial Os problemas da delação (29/8), este jornal
endossou o “viés formalista” da tese do STF (na verdade, a meu ver, ela é bem
mais que só isso) que resultou na libertação de Aldemir Bendine, o elemento que
o PT instalou na presidência da Petrobrás e do Banco do Brasil em boa parte do
período em que passaram pelo “maior assalto consentido já registrado na
história da humanidade”. Não existe qualquer dúvida quanto à culpabilidade de
Bendine nem dos seus comparsas, mas o precedente poderá resultar na libertação
de praticamente todos os envolvidos, a começar pelo o ex-presidente Lula, sobre
cuja culpabilidade também não paira a menor dúvida.
Vem de muito longe o processo de domesticação do brasileiro
para deixar-se cavalgar pelo absurdo sem reagir. O sistema de educação jesuíta,
a ordem religiosa que por 389 anos teve o monopólio régio da educação no
Brasil, não partia de perguntas nem visava a aquisição de conhecimento. Era um
sistema defensivo criado para sustentar a qualquer preço a “verdade revelada”
que fundamentava o sistema de poder e de organização da sociedade em castas
detentoras de privilégios hereditários ameaçados pela revolução democrática.
O truque consiste em despir toda e qualquer ideia a ser
discutida da sua relação com o contexto real que a produziu para examiná-la
como se existisse em si mesmo, desligada dos fatos ou pessoas às quais se
refere. Sem sua circunstância, a ideia transforma-se num corpo inerte, ao qual
não se aplicam juízos de valor. Assim esterilizado, o raciocínio é, então,
fatiado nos segmentos que o compõem, sendo a coerência interna de cada um
examinada isoladamente nos seus aspectos formais, segundo as regras da lógica
abstrata, as únicas que podem ser aplicadas a esse corpo dissecado.
Se qualquer desses segmentos apresentar a menor imperfeição
lógica ou puder ser colocado em contradição com qualquer dos outros, a
imperfeição “contamina” o todo e o debatedor fica autorizado a denunciar como
falso o conjunto inteiro, mesmo que, visto vivo e dentro do seu contexto, ele seja
indiscutivelmente verdadeiro.
Como nenhuma proposição humana é capaz de passar incólume
por esse exercício de dissecação, a pessoa começa a duvidar da própria
capacidade de discernimento. Desclassificados o senso comum (até hoje a base do
sistema jurídico anglo-saxônico) e a razão como instrumentos bastantes para
dirimir controvérsias, tudo acaba tendo de ser decidido por um juiz segundo uma
regra artificial que deve ser vaga o bastante para permitir as mais variadas
interpretações, de modo a conferir a esse juiz uma virtual onipotência.
Invocar o límpido preceito do “na dúvida, a favor do réu”
para justificar o movimento que, visto no conjunto, tem o óbvio propósito de
manter a impunidade dos representantes do povo que traem seus representados – a
própria negação do sentido de “democracia” – é um exemplo prático de como esse
sistema põe a verdade a serviço da mentira e a lei a serviço do crime. Seguido
à risca ele garante que nenhum réu com dinheiro suficiente para pagar advogados
possa ser condenado em definitivo e nenhum “direito adquirido” pela
privilegiatura (são estes que estrangulam economicamente a Nação; o que nos
roubam sem o recurso à lei é apenas troco) venha a ser desafiado.
O esquema de Antonio Gramsci é um aggiornamento da dialética
defensiva jesuíta. Ele marca o momento da rendição da utopia socialista e o
decidido abraço da casta que ela pôs no poder pelos caminhos do privilégio na
luta contra a meritocracia, o pressuposto essencial da democracia. A paulatina
conversão dessa luta de uma disputa entre verdades concorrentes para a
destruição do próprio conceito de verdade (a “pós-verdade”) inclui o
reconhecimento da relação indissolúvel entre democracia e verdade (cujo agente
intermediador é a imprensa, que não sobreviverá se não reassumir esse papel). E
a admissão do fato de que onde está bem plantada ela só pode ser destruída por
dentro, a partir de uma deliberação da maioria contra si mesma, e que só uma
trapaça pode produzir esse efeito homenageia a superioridade moral que os seus
inimigos sempre negaram à democracia ao longo de todo o século 20.
A apropriação pelas ditaduras socialistas dos métodos do
capitalismo pré-democrático, o ataque maciço contra os direitos do consumidor,
o esmagamento do indivíduo e a concentração extrema da riqueza, frutos da volta
dos monopólios, a globalização da censura gramsciana agora deslocada para o
campo do comportamento, os ensaios de Vladimir Putin para o falseamento da
eleição americana, as primeiras ações de censura das megaplataformas da
internet, os movimentos coordenados de militâncias internacionais contra e a
favor de governos nacionais tendo a Amazônia (e não somente ela) como pretexto
desenham os contornos que terá a guerra no novo mundo hiperconectado. As UTIs
serão invadidas, os cateteres de sustentação da vida (no caso brasileiro, o do
agronegócio) serão implacavelmente arrancados das veias das economias
moribundas, os interesses de casta da privilegiatura estarão sempre acima de
tudo. Mas os únicos remédios conhecidos seguem sendo os mesmos de sempre: a
exposição da verdade e o culto ao merecimento.
O Brasil não precisa de “um novo pacto social”. O Brasil
precisa do seu primeiro pacto social. Fazer a revolução democrática que saltou.
Mudar o poder de dono pela primeira vez em sua história. E a única maneira
conhecida de consegui-lo sem que a tentativa degenere num sistema de opressão
da maioria sobre a minoria é com a velha receita dos iluministas. Uma
democracia efetivamente representativa, o que só o sistema de eleições
distritais puras proporciona, com uma cidadania armada de recall, referendo,
iniciativa legislativa e a prerrogativa de reconfirmação periódica dos poderes
dos seus juízes, pela razão muito elementar de que, fora dos contos da
carochinha, só tem algum controle sobre o seu destino e condição de proteger o
que é seu quem tem o poder de demitir.”
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