"A lei é a arma com que se assalta a Nação
Por Fernão Lara Mesquita
A deformação do federalismo brasileiro, demonstrou dias
atrás nesta página o ex-ministro Jose Serra, não está, como geralmente se
pensa, na distribuição do dinheiro da arrecadação. “Em média, a participação de
estados e municípios é de 30,9% nos países federados situados em nossa faixa de
renda e de 49,5% entre os mais ricos (…)
no Brasil eles se apropriam de 56,4% mas vivem uma crônica
hipossuficiência financeira e administrativa”. “Essa descentralização é
consequência direta do pacto federativo decorrente da Constituição de 88 que
definiu a autonomia como regra”, diz o ex-ministro, que sugere que é nessa
autonomia, somada à incompetência dos gestores estaduais e municipais que está
o problema, o que remete à “solução” de sempre que seria aumentar a
centralização.
Falso! O problema essencial do Brasil é que a autonomia que
a Constituição definiu como regra é a dos representantes, que deveriam ser
fiscalizados, em relação aos representados, que deveriam ter plenos poderes
para fiscaliza-los tanto mais de perto quanto mais se vai descendo na
hierarquia dos entes de governo (união, estados, municípios, distritos
eleitorais) sob pena de perda imediata do mandato dos faltosos. Então sim
haveria ganhos, e enormes, em pulverizar a distribuição do dinheiro dos
impostos.
Mas blindados os funcionários e representantes eleitos
contra qualquer interferência dos seus representados, pulverizar a distribuição
do dinheiro entre quase seis mil prefeituras, governos estaduais e respectivos
legislativos é apenas e tão somente multiplicar exponencialmente o número de
ralos por onde se irá esvair sem nenhum controle o dinheiro público.
Todas as desgraças brasileiras têm como causa fundamental
esse desenraizamento do País Oficial da única fonte de legitimação do poder
numa democracia. Invocar a constituição para encerrar controvérsias em países
onde ela é o contrato para impor limites a quem detém o poder pactuado entre
iguais e referendado por todos quantos concordaram em ceder parte de sua
autonomia individual para fundar o Estado resultante desse contrato, faz todo
sentido.
Mas invocar uma constituição que é produto exclusivo das
deliberações de uma casta para reafirmar seus poderes e privilégios e recriar a
sociedade feudal, aquela cuja legitimidade dependia exclusivamente do peso do
passado, pelo expediente de reduzir esse “passado” a um par de segundos
mediante a decretação da intocabilidade do “direito adquirido” apenas por ter
sido “adquirido” e a partir do minuto seguinte a que tiver sido “adquirido” é
tão somente um ato de força extremo para calar a denúncia dessa falsificação e
impor pela força a opressão aos oprimidos.
Fala-se muito hoje na “polarização do debate político” mas a
verdade é que não há debate sobre as questões essenciais no Brasil. Um
entendimento mínimo sobre uma agenda comum só pode surgir em torno da definição
da regra do jogo, nunca em torno do resultado desejado para o jogo. As
constituições dignas do nome são as que limitam-se a definir como operar
mudanças e não de onde para onde mudar nem, muito menos ainda, quem vai ganhar
e quem vai perder sempre o jogo a cada nova mudança que houver que é
estritamente o que faz a nossa “Constituição dos Miseráveis”.
O analista que parte da premissa de que o Brasil é uma
democracia condena fatalmente ao erro todas as conclusões subsequentes. Não é!
Nunca foi! E a Constituição de 88 é precisamente o documento que consagra esse
não ser acima de todos os outros, ao sacramentar a deformação da representação
do País Real no País Oficial feita para dar sobrevida à ditadura militar,
institucionalizar a desigualdade perante a lei e “petrificar” o privilégio.
O “Brasil vocal”, que inclui da política à imprensa,
divide-se hoje, com as raríssimas exceções que confirmam a regra, entre a
bandidocracia que assume a autoria de toda e qualquer ignomínia e os caronas da
bandidocracia que, por sua vez, dividem-se entre os com vergonha e os sem
vergonha do papel a que se têm prestado; entre os que apenas murmuram diante
das ignomínias contra as quais suas consciências lhes pedem que gritem, e os
que nem a isso chegam.
Contam-se nos dedos os que vão à raiz do problema. A verdade
nua e crua é que dispensada da obrigatoriedade de legitimação pelo povo a cada
nova alteração significativa, como é imperativo que aconteça nas democracias, a
lei no Brasil está reduzida à condição de arma com que a privilegiatura assalta
a Nação. O paroxismo da subversão. A tentativa do momento, aliás, é de criar
mais uma para determinar, entre outras aberrações, que se alguma das
“excelências” for flagrada roubando-nos também por fora da lei, os roubados é
que passarão a pagar pela defesa do ladrão.
Com que amplitude a Nação vem sendo assaltada com o recurso
a leis sem nenhum resquício de legitimidade é algo de que nos presta contas
eloquentes o orçamento federal: do 1 trilhão e 480 bilhões de reais que a União
nos arranca todo ano em impostos sobram apenas 19 bi para investir no Brasil.
Todo o resto vai para pagar os salários, as aposentadorias e as mordomias da
opulenta corte do funcionalismo federal que conta pouco mais de dois milhões de
indivíduos e os caronas da privilegiatura que ela coopta para não ser
incomodada.
É impossível que o Brasil funcione orientado para a justiça
enquanto o problema da ilegitimidade das nossas leis não for encarado de
frente. A solução passa obrigatoriamente pela arrumação da questão da
representação. É preciso criar, primeiro, um modelo de eleição que permita
saber exatamente “quem representa quem” (voto distrital puro) e, em seguida,
determinar com que instrumentos devem contar os representados para fazer respeitar
sua vontade pelos seus representantes (recall, referendo, inciativa, controle
das carreiras jurídicas). Só então teremos entrado no território da democracia
no interior do qual aloja-se o território da justiça. Não dá para chegar ao
segundo sem passar pelo primeiro.”
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