“Os Estados e o ‘timing’
Por Fabio Giambiagi
O País caminha, aparentemente, para que em outubro tenhamos
aprovado o que terá sido a reforma mais profunda da Previdência desde a
Constituição de 1988. Mesmo assim, não há razões para comemorar esse feito de
forma muito efusiva, por dois motivos. Primeiro, porque a despesa
previdenciária continuará aumentando em termos reais ano após ano, ainda que,
naturalmente, numa velocidade bastante inferior em relação à que se verificaria
se a reforma não fosse aprovada. E segundo, porque a reforma aprovada na Câmara
deixou de lado os Estados e municípios. Considerando que o fluxo de
desequilíbrio destes, pelo Anuário Estatístico da Previdência Social, passou de
R$ 27 bilhões em 2010 para R$ 92 bilhões em 2017, tem-se uma sinalização da
nossa lentidão paquidérmica em fazer mudanças estruturais, mesmo quando o País
avança.
Tal omissão se explica, politicamente, como resultado do que
em teoria dos jogos é um típico jogo não cooperativo. O exemplo clássico é o
famoso “dilema dos prisioneiros”, em que dois detentos podem agir racionalmente
ou, olhando puramente para seus interesses individuais, criar um resultado
negativo para o conjunto representado pela soma de ambos. Como podemos entender
que se tenha chegado a esta situação tão ruim para o País, de um problema óbvio
e enorme não ser endereçado? Na verdade, isso é bastante fácil de entender
quando se leva em conta o mosaico político dos Estados. Os governadores do
Nordeste, pertencentes ao lado do espectro político associado (lato sensu) à
esquerda, manifestaram-se, em sua maioria, pro forma a favor da reforma, porém
ao mesmo tempo em que os parlamentares dos seus partidos, no Congresso e nas
ruas, faziam campanha aberta contra a aprovação da PEC.
Como a reforma envolve medidas impopulares e vários desses
parlamentares oposicionistas serão candidatos a eleições majoritárias no
futuro, o script que resultaria da aprovação da PEC original – que tinha os
Estados e municípios na reforma – era muito claro: os Estados se beneficiariam
da medida – pela contenção das despesas que resultaria da reforma –, enquanto,
nas eleições de 2020 ou 2022, os deputados dos mesmos partidos que os
governadores – que não votam no Congresso, em Brasília – fariam campanha contra
os candidatos do centro e da direita, acusando-0s de terem votado a favor da
reforma e “contra o povo”. Um contingente expressivo, portanto, de
parlamentares do centro e da direita se aliou, na prática, à oposição no
Congresso para bloquear a parte da reforma que afetaria os Estados, deixando-os
de fora. A lógica é fazer os governadores “sangrarem” politicamente, assumindo
o ônus de aprovar medidas duras de aumento do período de serviço dos servidores
estaduais, o que em âmbito local deve provocar certo desgaste para eles.
Em mais de uma oportunidade, nos últimos meses, tenho
utilizado a mesma expressão: “O nome do jogo é articulação política” (no mais
alto grau). Foi ela a grande ausente nesse ponto específico. Lembremos que, em
2003, Lula aprovou a idade mínima e a taxação dos servidores – duas medidas
politicamente explosivas até então – e, talvez por ter uma liderança maior
sobre o Congresso, não só conseguiu fazer a reforma passar, como, além disso, o
fez valendo para os três níveis de governo – central, estadual e municipal. A
liderança e a articulação do Executivo não se fizeram presentes na reforma de
2019 e o resultado é essa reforma com apenas uma perna só – a federal.
O fato de a reforma não ter os Estados como parte inerente a
ela acarreta dois grandes ônus. O primeiro é a questão fiscal em si. Como o
problema previdenciário nas alçadas subnacionais é gravíssimo, manter os
Estados fora da reforma é uma garantia de que seus problemas fiscais vão
continuar, ou seja, de que não veremos tão cedo notícias como X sai da crise ou
Após vários anos, Y volta a investir pesadamente, referindo-se aos Estados X ou
Y.
O segundo problema é o risco de repetição de imagens como as
que os habitantes do Rio de Janeiro vimos há quatro ou cinco anos, quando o
Estado do Rio, na prática, quebrou e foi obrigado pelas circunstâncias a um ajuste
num contexto de grande contestação social. Durante meses a população fluminense
acostumou-se a cenas de ônibus queimados, vitrines quebradas, black blocs nas
ruas, etc. E em muitos lares os servidores públicos, até mesmo aposentados e
pensionistas do Estado, ficaram sem receber ou receberam com atraso por meses a
fio. A perspectiva do risco de essas cenas se repetirem em diversos Estados
durante um ou dois anos seria um pesadelo, quando se considera a necessidade de
aumentar o investimento do País. Imagens como essas toda semana no noticiário
seriam a melhor forma de dissuadir interessados em fazer apostas pesadas no
futuro.
Por tudo isso, os Estados deveriam aproveitar para avançar
na elaboração das próprias propostas a serem encaminhadas às respectivas
Assembleias Legislativas, de preferência logo após a aprovação da emenda
constitucional pelo Congresso Nacional. Aguardar, sem fazer nada, a aprovação
de uma “PEC paralela” pode deixá-los na pior das situações, se ela for aprovada
no Senado, mas esbarrar nas mesmas restrições que a original na Câmara dos
Deputados.
Será praticamente impossível aprovar medidas duras em âmbito
local no segundo semestre de 2020, quando toda a atividade política deverá
girar em torno das eleições municipais de outubro do ano que vem. Ao mesmo
tempo, 2021 está muito longe, quando se leva em conta a urgência da situação
fiscal dos Estados. O ideal seria os governadores amadurecerem rapidamente as
ideias a respeito do tema em outubro e encaminharem as propostas em novembro, para
aprová-las na Assembleia até o segundo trimestre do ano que vem.
O País precisa virar essa página de uma vez por todas.”
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