“Falácia
Por Ana Carla Abrão
Em latim, fallere é o verbo que se traduz para o português
como enganar, iludir ou trapacear. Dele deriva o termo falácia, que nada mais é
do que um raciocínio que parece fazer sentido, mas que leva, invariavelmente, a
uma conclusão errada. Do ponto de vista lógico, falácia é o uso de argumentos
sem fundamento ou falhos para defender um resultado. Há falácias intencionais,
cujo objetivo é o de confundir – e não o de esclarecer. Esses são sofismas e
andam se multiplicando no debate nacional quando o tema é ajuste fiscal ou o
teto de gastos. São textos, argumentos e conclusões que arregimentam defensores
pouco isentos, pois buscam insistir no erro já cometido, ou justificá-los,
confundindo causa e consequência numa ciranda de números pouco rigorosa.
“Gasto público é vida” é a hoje célebre frase da então
ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, na reunião que marcou o início da nossa
derrocada fiscal. Foi ali que se definiu a inflexão de uma política econômica
austera e consistente e criou-se as bases para o que viria a ser conhecido mais
tarde como a Nova Matriz Econômica (NME), gênese dos nossos problemas fiscais.
Mas as viúvas e viúvos dessa (des)orientação econômica continuam aí, insistindo
que a causa da recessão e o vilão da dívida pública – os juros, claro – são
todos resultados das correções e não dos erros cometidos no passado. Insistem,
afinal, que é gastando que se sai da crise, defendendo conceitos amplamente
usados no passado recente, numa esquizofrenia de quem acredita que ações iguais
podem gerar resultados diferentes.
Foi esse o mote de artigo publicado no domingo na Folha de
S. Paulo, sob o título de “Por que cortar gastos não é solução para o Brasil
ter crescimento vigoroso?” e assinado por um grupo de economistas da Unicamp,
UFRJ e Unisinos e UFF. Ali os autores negam o desequilíbrio fiscal e argumentam
que o crescimento dos gastos obrigatórios não é um problema, e reforçam a
conclusão de que a recessão é fruto do ajuste. Afinal, como não há
desequilíbrio e não há como faltar recursos, pois o governo pode se financiar
de forma ilimitada em moeda local, o grupo toma carona numa versão bem
tupiniquim da nova teoria monetária (NMT na sigla em inglês) e a tempera com
pitadas de NME.
Os números, de fato, não mentem. Vivemos um ciclo de redução
contínua da capacidade do setor público de investir, o que leva à obvia
conclusão de que estamos sofrendo com baixo investimento público (e privado). O
investimento público atingiu patamares historicamente baixos, nos três níveis
da federação. Paralelamente, os gastos obrigatórios, em particular os gastos
com despesas de pessoal, cresceram à taxa real de 3,17% ao ano nos últimos 7
anos enquanto as receitas se elevaram, em termos reais, menos de 0,82% nesse
mesmo período. O descolamento das duas trajetórias ocorreu tanto em tempos de
bonança quanto em tempos de recessão, sendo a sequência muito clara.
À medida que receitas extraordinárias foram minguando e as
despesas obrigatórias continuavam crescendo em ritmo definido pelos seus
motores próprios (vinculações e/ou crescimento vegetativo), só havia uma conta
a ser reduzida para minimizar o desequilíbrio estrutural entre despesas e
receitas. E essa conta era a do investimento, aquela, dentre todas as despesas
discricionárias, de mais fácil ajuste. O desequilíbrio estrutural continua,
apesar de negado pelos autores, e hoje compromete não só os investimentos, mas
também o funcionamento da máquina.
Mas a solução fácil viria não pela reversão do desequilíbrio
inexistente, receita vil de ortodoxos sem coração, mas pela manutenção da
tendência de crescimento da dívida pública. Afinal, gasto é vida, orçamento
público tem dinâmica distinta do orçamento privado e dívida pública pode ser
ilimitada. Para fechar esse argumento temos que esquecer dos juros, aquele
vilão que os heterodoxos tendem a ignorar ser um preço. Juro, lembremos, é
consequência e não causa. Incerteza, solvência e risco estão na base da
formação desse preço, a não ser que ignoremos tudo isso e deixemos a inflação
voltar, assim como aconteceu em 2016.
De fato, os autores têm razão ao afirmar que o Brasil não
quebrou. Mas só não quebrou ainda porque houve, em meados de 2016, um
impeachment que nos deu a chance de reescrever nossa história econômica e mudar
a rota que nos levava ao colapso. Foi graças ao teto de gastos, à reforma
trabalhista, à aprovação da TLP e agora à reforma da Previdência – e quiçá uma
profunda reforma administrativa – que começaremos a vislumbrar um país melhor.
Um país mais justo, com mais oportunidades e uma melhor alocação de recursos.
Gastar menos e melhor é a solução. Usar os resultados dos excessos de gastos
para justificar a necessidade de gastar mais para crescer é falácia, senão
enganação.”
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