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terça-feira, 17 de setembro de 2019

Falácia





“Falácia
      
Por Ana Carla Abrão

Em latim, fallere é o verbo que se traduz para o português como enganar, iludir ou trapacear. Dele deriva o termo falácia, que nada mais é do que um raciocínio que parece fazer sentido, mas que leva, invariavelmente, a uma conclusão errada. Do ponto de vista lógico, falácia é o uso de argumentos sem fundamento ou falhos para defender um resultado. Há falácias intencionais, cujo objetivo é o de confundir – e não o de esclarecer. Esses são sofismas e andam se multiplicando no debate nacional quando o tema é ajuste fiscal ou o teto de gastos. São textos, argumentos e conclusões que arregimentam defensores pouco isentos, pois buscam insistir no erro já cometido, ou justificá-los, confundindo causa e consequência numa ciranda de números pouco rigorosa.

“Gasto público é vida” é a hoje célebre frase da então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, na reunião que marcou o início da nossa derrocada fiscal. Foi ali que se definiu a inflexão de uma política econômica austera e consistente e criou-se as bases para o que viria a ser conhecido mais tarde como a Nova Matriz Econômica (NME), gênese dos nossos problemas fiscais. Mas as viúvas e viúvos dessa (des)orientação econômica continuam aí, insistindo que a causa da recessão e o vilão da dívida pública – os juros, claro – são todos resultados das correções e não dos erros cometidos no passado. Insistem, afinal, que é gastando que se sai da crise, defendendo conceitos amplamente usados no passado recente, numa esquizofrenia de quem acredita que ações iguais podem gerar resultados diferentes.

Foi esse o mote de artigo publicado no domingo na Folha de S. Paulo, sob o título de “Por que cortar gastos não é solução para o Brasil ter crescimento vigoroso?” e assinado por um grupo de economistas da Unicamp, UFRJ e Unisinos e UFF. Ali os autores negam o desequilíbrio fiscal e argumentam que o crescimento dos gastos obrigatórios não é um problema, e reforçam a conclusão de que a recessão é fruto do ajuste. Afinal, como não há desequilíbrio e não há como faltar recursos, pois o governo pode se financiar de forma ilimitada em moeda local, o grupo toma carona numa versão bem tupiniquim da nova teoria monetária (NMT na sigla em inglês) e a tempera com pitadas de NME.

Os números, de fato, não mentem. Vivemos um ciclo de redução contínua da capacidade do setor público de investir, o que leva à obvia conclusão de que estamos sofrendo com baixo investimento público (e privado). O investimento público atingiu patamares historicamente baixos, nos três níveis da federação. Paralelamente, os gastos obrigatórios, em particular os gastos com despesas de pessoal, cresceram à taxa real de 3,17% ao ano nos últimos 7 anos enquanto as receitas se elevaram, em termos reais, menos de 0,82% nesse mesmo período. O descolamento das duas trajetórias ocorreu tanto em tempos de bonança quanto em tempos de recessão, sendo a sequência muito clara.

À medida que receitas extraordinárias foram minguando e as despesas obrigatórias continuavam crescendo em ritmo definido pelos seus motores próprios (vinculações e/ou crescimento vegetativo), só havia uma conta a ser reduzida para minimizar o desequilíbrio estrutural entre despesas e receitas. E essa conta era a do investimento, aquela, dentre todas as despesas discricionárias, de mais fácil ajuste. O desequilíbrio estrutural continua, apesar de negado pelos autores, e hoje compromete não só os investimentos, mas também o funcionamento da máquina.

Mas a solução fácil viria não pela reversão do desequilíbrio inexistente, receita vil de ortodoxos sem coração, mas pela manutenção da tendência de crescimento da dívida pública. Afinal, gasto é vida, orçamento público tem dinâmica distinta do orçamento privado e dívida pública pode ser ilimitada. Para fechar esse argumento temos que esquecer dos juros, aquele vilão que os heterodoxos tendem a ignorar ser um preço. Juro, lembremos, é consequência e não causa. Incerteza, solvência e risco estão na base da formação desse preço, a não ser que ignoremos tudo isso e deixemos a inflação voltar, assim como aconteceu em 2016.

De fato, os autores têm razão ao afirmar que o Brasil não quebrou. Mas só não quebrou ainda porque houve, em meados de 2016, um impeachment que nos deu a chance de reescrever nossa história econômica e mudar a rota que nos levava ao colapso. Foi graças ao teto de gastos, à reforma trabalhista, à aprovação da TLP e agora à reforma da Previdência – e quiçá uma profunda reforma administrativa – que começaremos a vislumbrar um país melhor. Um país mais justo, com mais oportunidades e uma melhor alocação de recursos. Gastar menos e melhor é a solução. Usar os resultados dos excessos de gastos para justificar a necessidade de gastar mais para crescer é falácia, senão enganação.”

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