“Fábula da aposentadoria
Por Pedro Fernando Nery
Maria, a diarista, corre para preparar as roupas que dona
Glenda vai levar para a viagem, antes que chegue do salão de beleza. Glenda,
ex-advogada, já parou de trabalhar: usufruiu das regras atuais e se aposentou
aos 53 anos de idade. Ela pôde se aposentar bem antes de Rosa, a manicure, que
só vai conseguir se aposentar aos 63 anos, já que não conseguiu muito tempo de
emprego com carteira assinada. Maria, a diarista, vai se aposentar aos 68 anos.
Maria apressa-se, porque também tem de limpar a bagunça
feita por Jorge, o pintor, contratado pelo seu Henrique, ex-engenheiro, para
pintar o novo quarto. Henrique se aposentou aos 56 anos de idade, Jorge só o
fará aos 68 anos.
A imensa desigualdade do Brasil se apresenta também no
acesso à aposentadoria, que é facilitado justamente para os trabalhadores que
vivem mais. Como ocorre somente em outros 12 países, no Brasil ainda existe a
aposentadoria por tempo de contribuição. Ela não possui idade mínima, mas é
destinada a quem teve muito tempo de emprego formal (30 anos se mulher, 35 anos
se homem). Em média, a aposentadoria é concedida aos 53 anos para as mulheres,
como dona Glenda, ex-advogada, e aos 56 anos para homens, como seu Henrique,
ex-engenheiro.
Trabalhadores mais mal inseridos no mercado de trabalho têm
de se aposentar depois. Vítimas das altas e crônicas taxas de desemprego e
informalidade, só podem se aposentar a partir dos 60 anos (mulheres) ou 65 anos
(homens) se não cumprirem os requisitos da aposentadoria por tempo de
contribuição. Nesse caso, podem receber a aposentadoria por idade, com menos
tempo de carteira: 15 anos. Em média, é concedida aos 67 anos para homens e 63
anos para mulheres, como no caso de Rosa, a manicure.
O requisito de 15 anos, porém, pode ser muito para ocupações
de menor produtividade, em que labutam trabalhadores menos escolarizados,
principalmente no caso de mulheres. Como ficam muito tempo inclusive fora da
força de trabalho, muitas só podem recorrer a uma modalidade de aposentadoria
formalmente assistencial, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), com idade
mínima de 65 anos para ambos os sexos. Em média, é concedida aos 68 anos para
mulheres, como Maria, a diarista, ou Jorge, o pintor.
A desigualdade do nosso sistema que privilegia os com melhor
emprego se observa não só nos dados da idade média de concessão, mas também na
duração dos benefícios. Na estimativa do economista Rodrigo Coelho, a
expectativa de vida aos 65 anos é de 86 anos para as mulheres que se aposentam
por tempo de contribuição, mas de 82 anos para as beneficiárias do BPC. Para
homens, é de 83 anos na aposentadoria por tempo de contribuição e de 79 anos no
BPC.
Apesar de viver menos, Maria, a doméstica, se aposentará 15 anos
depois da patroa Glenda. Apesar de viver menos, Jorge, o pintor, se aposentará
12 anos depois do patrão Henrique.
Essa desigualdade é endereçada na reforma da Previdência,
que cria a idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição, sem elevar
o tempo mínimo de contribuição dos atuais trabalhadores ou a idade do BPC.
Também não afeta a idade mínima da Previdência rural, de que
não tratamos neste texto, enquanto endurece os requisitos e o cálculo da
aposentadoria dos servidores públicos – maior fonte de desigualdade do sistema
pelos valores envolvidos.
Pelo seu foco nos maiores benefícios da Previdência urbana,
como a aposentadoria por tempo de contribuição, e não na Previdência rural ou
no BPC, a reforma tem seu impacto fiscal concentrado no Sudeste e no Sul do
Brasil.
Do impacto de R$ 620 bilhões em dez anos nos benefícios
operados pelo INSS, cerca de R$ 200 bilhões, um terço, está em São Paulo.
Equivale ao dobro do impacto dos Estados de Norte e Nordeste somados, em minha
estimativa. Os demais Estados do Sul e do Sudeste, Rio de Janeiro a frente,
concentrariam quase 50%.
A ênfase da reforma da Previdência na aposentadoria por
tempo de contribuição tem caráter progressivo também do ponto de vista da
distribuição regional da renda.”
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