“Um desastre
muito maior que a crise do transporte
POR ROLF KUNTZ
Esqueceram o
Brasil ao cuidar da crise dos caminhoneiros. O cartel do transporte, um
monstrinho gerado no Palácio do Planalto, nem começou a funcionar plenamente,
mas os brasileiros continuam pagando a conta, com preços mais altos, trava na
atividade econômica e nova sangria no Orçamento federal. O efeito inflacionário
pode ter sido passageiro, mas outros danos serão com certeza duradouros. O
custo final é um mistério. A tabela de fretes criada pela Medida Provisória
(MP) 832/18 deve ser consagrada em lei na primeira quinzena de julho. A votação
deve ser completada no dia 11, segundo previsão divulgada pelo Congresso. Será
a legalização de um cartel, mas quantos, em Brasília, se preocupam com detalhes
tão desprezíveis?
Um parecer
equilibrado foi prometido pelo relator da MP, deputado Osmar Terra (MDB-RS). É
preciso, segundo ele, dar o peso adequado aos interesses dos caminhoneiros e
das transportadoras. “Temos de buscar um acordo do tipo ‘ganha-ganha’, que não
beneficie só um lado ou outro”, disse o relator, segundo informação publicada
no portal da Câmara. Poderá ser um acordo “ganha-ganha” para os participantes
do cartel. Para os brasileiros ficarão os custos. O acordo, dirão os defensores
do governo, foi negociado para evitar uma paralisação mais longa e mais
prejudicial a todos. Acredite nisso quem tiver suficiente boa vontade.
A história é
obviamente outra. De fato, a autoridade cedeu a uma extorsão, quando podia ter reagido.
Ao se livrar do problema, deixou em segundo plano os interesses da maior parte
da população e também a legalidade, violada com o bloqueio das estradas.
A legalidade
ainda foi posta em xeque, em seguida, com o desenho de um cartel de
transportadores. A livre concorrência é um dos princípios constitucionais da
ordem econômica, segundo o inciso IV do artigo 170. Alguém podia ter dado uma
espiada na Constituição. Também podia ter consultado os técnicos do Cade, o
Conselho Administrativo de Defesa Econômica, encarregado de zelar pela
manutenção de um mercado concorrencial.
Nem todos, no
governo, aplaudiram a solução. O risco de se formar um cartel foi apontado pelo
Ministério da Fazenda e pelo Cade, há pouco mais de uma semana, em documentos
de resposta a uma consulta do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal
(STF). Evitando um confronto explícito com a Presidência, o pessoal da Fazenda
admitiu a tabela, mas sugeriu extingui-la no menor prazo possível.
Enquanto o
governo se vangloria de haver resolvido o problema por meio de um acordo
negociado pacificamente, o mercado continua confuso, os empresários da
indústria mostram-se pessimistas e representantes do agronegócio apontam
defeitos na tabela, inadequada, segundo eles, para tipos de caminhão usados no
transporte de grãos. No meio da bagunça, contratos têm sido acertados até com
valores abaixo da tabela, porque os caminhoneiros precisam trabalhar, como
disse um representante citado em matéria do Estadão.
Todos, de fato,
precisam comer, e milhões de famílias foram prejudicadas pelo encarecimento de
produtos essenciais, um dos efeitos imediatos da paralisação do transporte. O
efeito aparece no IPCA-15 de junho, com alta de 1,11%. Desde 1996 foi a maior
elevação estimada para o mês. A variação refletiu principalmente os aumentos de
preços da comida e dos combustíveis, ocasionados pela paralisação do transporte
rodoviário.
O último
IPCA-15 foi pesquisado entre a segunda quinzena de maio e a primeira de junho.
O anterior havia mostrado aumento médio de preços de apenas 0,14%. A aceleração
deixa claro o estrago causado pela paralisação dos caminhões na segunda metade
de maio. O IPCA-15 é usado como prévia do Índice Nacional de Preços ao
Consumidor Amplo (IPCA), medido entre o começo e o fim de cada mês.
O impacto nos
preços pode ter sido passageiro. Os diretores do Banco Central (BC) apostaram
nisso e decidiram, na quarta-feira, manter em 6,50% a taxa básica de juros.
Analistas do mercado apresentaram avaliação semelhante. Mas os preços poderão
ainda ser pressionados pela aplicação da tabela, se a MP 832/18 for aprovada.
Além disso, o subsídio ao diesel custará, segundo os últimos cálculos, algo
entre R$ 15 bilhões e R$ 16 bilhões. Para cobrir esse buraco, criado pela
decisão presidencial de ajudar os transportadores, o ministro da Fazenda
anunciou um remanejamento de gastos. Outras despesas, até de saúde, serão
prejudicadas. Não haveria problema se dinheiro caísse do céu, como parecem crer
os adversários da austeridade fiscal.
Por uma
extraordinária coincidência, um projeto em exame na Câmara cria vários
benefícios fiscais para o setor de transportes, como isenção de tributos para a
renovação de frotas de caminhões. Também por espantosa coincidência, o relator
do projeto, deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP), é conhecido como dono de
frota. Se aprovado esse texto, criado a partir de projetos mais técnicos e
menos danosos, a sangria do Tesouro poderá ser seriamente ampliada.
Além da alta de
preços, alguns outros efeitos imediatos da crise no transporte rodoviário já
são conhecidos – entre esses, baixa mensal de 15,3% na produção de veículos,
redução de 20% na receita da indústria eletroeletrônica e queda de 16,4% nas
vendas de aço. Em maio, a criação de empregos formais, limitada a 33 mil vagas,
foi a menor do ano. Pode ter sido um mês atípico, expressão usada pelo ministro
do Trabalho, mas atraso na geração de empregos trava a recuperação do consumo e
também da produção. A redução da confiança do empresário já foi apontada pela
Confederação Nacional da Indústria. Também nesse caso os custos podem ser
consideráveis. Um governo disposto a usar sua autoridade teria evitado boa
parte dos danos – passados, presentes na atual confusão e futuros.”
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