“Molecagens nos
três Poderes
POR JOSÉ
NÊUMANNE
A incrível e
absurda malandragem perpetrada por três representantes do povo de um partido
que diz servir aos trabalhadores e respeitar a democracia, com a cumplicidade
de um desembargador federal, no primeiro domingo da Copa da Rússia sem o
Brasil, expôs a explícita desmoralização do nosso Estado de Direito. Finda a
semana em que os flagrantes delitos no registro espúrio de sindicatos no
Ministério do Trabalho afundaram o Poder Executivo no pântano do descrédito, a
manobra escusa tentada para retirar Lula da cela pela porta dos fundos foi a
gota d’água que inundou as enlameadas cavernas do Judiciário.
Às vésperas de
agosto, mês tido como “do desgosto”, o cidadão brasileiro já tinha sido exposto
a sórdidos truques de parlamentares, legitimados para legislar em nome do povo.
O projeto do deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP) perdoando as dívidas das
multas de caminhoneiros e transportadoras que provocaram pane seca e
desabastecimento de combustíveis e víveres foi incluído no relatório de Osmar
Terra (MDB-PR) que torna o frete mínimo obrigatório. Essa iniciativa do
Legislativo, com as bênçãos do Executivo, que distribui verbas do depauperado
erário a mancheias entre deputados das bancadas governistas, reproduz hoje a
mesma relação sórdida já antes condenada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O
arrombamento da ordem constitucional, que consagra o mercado livre, para
resolver uma crise criada pela ousadia dos chantagistas, que expuseram a
fragilidade de um governo impopular e desacreditado, não passa de uma versão
contemporânea do mensalão, que abriu a temporada de caça aos gatunos.
Durante curto
interregno, a cúpula do Judiciário apoiou o combate à corrupção, efetuado por
uma geração competente e proba de policiais, procuradores, juízes e
desembargadores federais das instâncias iniciais. Isso deu à população espoliada
a sensação de que a Justiça sanearia os altos e podres Poderes da República.
Mas tal aliança durou muito pouco.
Logo as
brechas, pelas quais criminosos de colarinho-branco passavam para ficar fora do
alcance da lei, se abriram nas divisões internas da cúpula da atividade
judiciária, em que boas iniciativas sempre sucumbiram ao corporativismo e à
corrupção. Essas câmaras escuras são percorridas mercê da negação do decantado
espírito da colegialidade, do qual somente uma ministra da “Suprema Corte”, Rosa
Weber, parece ser adepta. Ao contrário dela, os outros quatro que deram votos
vencidos na decisão pela jurisprudência que autoriza prisão de condenados em
segunda instância – a dupla Mello e de Mello, Lewandowski e Toffoli –
aliaram-se ao pagão novo Gilmar. E a desafiam em capciosas decisões
monocráticas.
A tabelinha
Lava Jato-STF não resistiu à nada gloriosa entrada dos tucanos nas listas dos
delatados da operação. Isso causou a guinada de 180 graus de Gilmar, dos que
apoiaram a jurisprudência firmada em três votações de 2016 para os adeptos da
distorção de preceitos constitucionais. Essa prática é antiga. Tendo confessado
que redigiu artigos da Constituição que não foram aprovados pela maioria do
plenário, Nelson Jobim ora é tido por alguns como presidenciável da conciliação
em outubro. E o então presidente do STF Ricardo Lewandowski rasurou cinicamente
o artigo da Constituição que proíbe condenados em impeachment de exercer cargo
público por oito anos. A canetada, sugerida por Renan Calheiros, permite hoje
que Dilma se candidate ao Senado pelo PT.
Quem não
redigiu nem rasurou a Carta Magna apela para a leitura errada do artigo 5.º,
segundo o qual ninguém é “considerado culpado antes do trânsito em julgado” de
seu processo. A extensão da isenção da culpa à proibição da prisão ou à
presunção de inocência, finda na segunda instância, não está no dicionário, mas
pode ser incluída, mercê do “poder da grana, que ergue e destrói coisas belas”
(apud Caetano Veloso).
Recentemente, o
ministro Mello soltou traficantes condenados em segunda instância com a mesma
desfaçatez com que Gilmar concedeu habeas corpus a clientes da banca da mulher.
E Toffoli devolveu o ex-chefe Dirceu, condenado em segunda instância a mais de
30 anos de prisão, ao doce lar. Atribui-se a esse duas vezes apenado (no
mensalão e no petrolão) o planejamento da molecagem do desembargador do
Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4) Rogério Favreto, por ele
indicado, a desafiar os colegas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF,
mandando soltar o mais famoso presidiário do Brasil.
Si non è vero,
è ben trovato (se não é verdade é bem pensado), diria don Vito Corleone, O
Poderoso Chefão da ficção de Mário Puzo. A fresta parecia promissora para o
trio Paulo Pimenta, Paulo Teixeira e Wadih Damous, dois deputados federais e um
levado à vaga aberta pela pressão do dirigente Quaquá na prefeitura do Rio. Um
dos 27 desembargadores do TRF-4 em seu primeiro plantão teria de ser mais
sensível à ideia “original” de que a pré-candidatura de Lula à Presidência
seria o fato novo para lhe permitir conceder o habeas corpus pedido à sorrelfa.
Meia hora depois do início do plantão do simpatizante na sexta-feira, deram à
luz o mostrengo.
Como Toffoli,
Favreto serviu a Dirceu. E como Toffoli mandou a jurisprudência da prisão
pós-segunda instância às favas. Não havia mais a possibilidade de contar com o
relaxamento da classificação do Brasil para a semifinal da Copa, pois a seleção
de Tite fora eliminada duas horas e meia antes. Não é correto, então, perguntar
se não combinaram com os belgas e pensar que a molecagem, de que a defesa de
Lula se fingiu distante, passaria incólume na euforia geral.
Mas quando
setembro vier, Toffoli, que como Favreto nunca foi juiz, será presidente do STF
e terá à mão o martelo para triturar a jurisprudência dos colegas, Moro, o
TRF-4 e o STJ. E retirar Lula da cadeia. Ingênuo será pensar que ele seria
menos cínico que Favreto.”
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AGD
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