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quarta-feira, 4 de julho de 2018

A reforma que contém todas as outras





“A reforma que contém todas as outras
        
POR FERNÃO LARA MESQUITA

Em matéria de reforma de instituições a ordem dos fatores determina o resultado. O erro fundamental dos críticos do desastre brasileiro está em não discernir o que é causa do que é consequência do desvio essencial que produz e reproduz as instituições tortas que temos. Primeiro que esse “tortas” depende de quem olha. Para a “1.ª classe” elas estão funcionando exatamente como foram desenhadas para funcionar, menos pelo exagero do seu “acerto”. Mas da “2.ª classe” para baixo, perdem-se todos em desenhar, cada um segundo a sua área de especialização ou a ordem de prioridades com que elas afetam a sua atividade, listas de reformas tão extensas que no final todos, mesmo os mais convictos da necessidade de cada uma delas individualmente, recuam de forçar o desencadeamento da mudança porque o País é um avião em voo, a vida é uma só e o risco de fazê-lo parar no ar é sempre maior que o de continuar voando mal.

É isso, mais que tudo, que tem garantido a continuação do que está aí.

Instituições servem a quem as desenha e detém o poder de instituí-las. E é isso, essencialmente, que está errado e precisa mudar no caso brasileiro. Se é o povo que queremos servido, é ao povo que devemos entregar a tarefa de desenhar e redesenhar; instituir e desinstituir as nossas instituições. O que nos faz falta é conquistar os meios de errar e aprender com nossos próprios erros, em vez de seguirmos tangidos pelos erros alheios para encalacradas “petrificadas” no tempo e no espaço ou, definindo mais precisamente o que ocorre aqui, sendo obrigados a tragar eternamente os acertos dos bandidos para viverem à nossa custa enquanto nos mantêm impotentes para fazermos nossas próprias escolhas.

A única instituição definitiva deve ser a que estabelece o modo de promover e legitimar mudanças. Tudo mais deve ser desenhado para facilitá-las, mesmo porque toda “solução” é só o início do próximo problema e é de fundamental importância ter essa transitoriedade em mente, pois o que determina a sobrevivência na arena da competição planetária, hoje como sempre, é a velocidade de adaptação à mudança.

Nunca foi fácil promover mudanças coordenadas e pacíficas. Na era da comunicação total, ironicamente, ficou ainda mais difícil. Estamos na idade do ouro do rancor. O ódio é o novo ópio do povo. O Google transforma os mais insignificantes deslizes do comportamento humano em manadas de dinossauros galopando desenfreadamente pela rede para todo o sempre, direcionados com a persistência dos algoritmos e a precisão do “microtargeting” para pisotear o nervo mais sensível de todos os que, no passado, no presente ou no futuro, manifestarem o menor sinal de sensibilidade a eles. Este viver sem o esquecimento cria tribos que as “polícias do pensamento” atiçam umas contra as outras, o que desperdiça toda a energia da cidadania em aprisionar em modelos institucionalizados comportamentos que, por definição, só podem ser realmente livres no espaço infrainstitucional. E isso desvia o foco da coletividade da única condição que nos une a todos, que é a de súditos semiescravos da “1.ª classe”.

Nunca houve acordo com relação a um destino final de chegada para toda a humanidade e, desde sempre, “autoritário” é quem tenta impor o seu e “totalitário” quem criminaliza o destino escolhido pelo outro, seja um governo, uma ferramenta privada ou os dois juntos o instrumento dessa imposição. É perfeitamente possível, no entanto, alcançar um denominador comum em torno de um “manual de navegação” das águas agitadas da diferença. A democracia moderna nasce exatamente da aceitação madura e tranquila da ausência de certezas. E a genialidade do sistema está em criar um arranjo de instituições absolutamente estáveis e seguras para dar a cada um a condição de processar do seu jeito a instabilidade e a insegurança inerentes ao estar vivo sendo parte de numa sociedade. Nele a única instituição “imexível” é a que define quem, exatamente, representa quem no panorama institucional, e os mecanismos de processamento das mudanças que podem e devem ocorrer em todas as demais ao sabor da necessidade. Como toda forma de governo, a “democracia representativa” também é uma hierarquia. E que os representados mandam nos representantes é uma noção inerente ao conceito de “representação”. A fórmula que permite operar essa hierarquia para a mudança com agilidade, segurança e legitimidade é a inventada pelos suíços há mais de 700 anos que metade do mundo copiou nos últimos 100: eleições distritais puras (federalismo) com retomada de mandatos (recall) e referendo de leis dos Legislativos por iniciativa dos representados a qualquer momento.

Todo o resto com isso se constrói.

O cidadão deve ser o imperador absoluto da sua área de residência. A menor instância eleita de representação deve ser o conselho de direção da escola pública do bairro, constituído por pais de alunos moradores dele encarregados de gerir o dinheiro dos impostos que pagam para a educação de seus filhos. Ele deve contratar o diretor e cobrar-lhe desempenho. Um certo conjunto de bairros formará um distrito municipal que elegerá o seu representante para fazer as leis da sua cidade. Uma constelação de distritos municipais constituirá um distrito estadual e destes se farão os distritos federais. Todos os eleitos devem ser demissíveis a qualquer momento e suas leis, revogáveis por votações de retomada de mandatos ou referendos convocados nos seus distritos.

Com todo mundo sabendo exatamente quem é quem, então sim, cada um segundo a sua necessidade, consultados os demais eleitores do distrito, ordenará ao seu representante que escreva e reescreva leis para ter ou não “escolas com partido”, funcionários estáveis ou não e mais ou menos bem pagos, impostos mais leves ou não, e para quê, juízes com mais ou menos poder de arbítrio, o crime tratado assim ou assado, Constituições mais ou menos “petrificadas”, pessoas com mais, com menos ou com nenhuns “direitos adquiridos”.

Acaba o papo furado e a verdade passa a imperar.

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