“Lições da Copa
ou anarquia judicial?
POR FLÁVIO
TAVARES
O frenesi
profundo e vasto que tomou conta do Brasil em razão da Copa do Mundo só podia
se transformar (ou redundar) na desolação dos dias seguintes à nossa eliminação.
Elevamos o futebol à condição de mito salvador, quase um messias, como se a
bola apontasse e demarcasse nosso destino glorioso de país.
O desconcerto
foi tanto que só não distorceu ainda mais o cotidiano porque, aqui, três
deputados decidiram armar uma ardilosa bofetada na própria Justiça e, com ela,
tentar libertar o ex-presidente Lula da Silva. A manobra estendeu-se por um fim
de semana, expôs a Justiça à torpeza do ridículo e, assim, deixamos de só
pensar na Rússia...
Sim, pois na
Copa fomos muito além do desporto. Depositamos nos pés dos atletas as
esperanças que já não recebemos das mãos dos governantes e dos poderosos do
setor privado que (nos labirintos do suborno) governam mais do que os próprios
governos. A próxima eleição deveria abrir novas portas, mas as medíocres
candidaturas presidenciais, surgidas do nada e rumando ao nada, nos afastam da
política. Incapazes de apontar soluções, o vazio nos levou a pontos mais
concretos.
Um drible de
Neymar fazia esquecer até a investigação sobre os portos e outras interrogações
sobre Michel Temer. Uma defesa de Alisson valia mais do que as sessões do
Congresso em Brasília ou das Assembleias nos Estados, em que os parlamentares
se amontoam no corredor, contam piadas ou gritam ao telefone celular, alheios
ao tema em debate. Um passe errado de Coutinho era mais dramático do que o
ministro Gilmar Mendes mandando soltar presos por corrupção, com base na lei.
Lá, na Rússia,
nos livraríamos até do pesadelo da Lava Jato e das dezenas de investigações
similares que, a cada dia, apontam um novo assalto aos cofres públicos urdido
no tríplice conluio de políticos, altos funcionários e grandes empresários. Já
não nos preocuparíamos com a violência urbana nem com o narcotráfico ou o
horror das drogas. Menos ainda com a contínua destruição do meio ambiente, que
aceitamos como “cataclismo natural”, sem entender que é obra nossa.
Transplantados
a um paraíso artificial, colocamos o Éden bíblico nos pés de 11 atletas e
fizemos de Tite um titã a nos guiar na esperança de termos algo grande pelo
qual sentir orgulho. Sim, pois Tite mostrou ter ideias de como ir adiante e as
expressou com a decisão de quem fez um diagnóstico profundo de tudo – da cabeça
aos pés – para, só depois, apontar caminhos.
Quem de nossos
guias na política e na sociedade diagnosticou, alguma vez, nossas mazelas e
apontou caminhos para transformar o diagnóstico em solução? Os candidatos ao
Planalto fogem das soluções. Repetem palavras vagas e genéricas, convencidos de
que tolice é ciência.
Bastava isso
para que a Copa lá, na Rússia, nos interessasse mais do que o cotidiano no
Brasil.
Eis, porém, que
num fim de semana um desembargador plantonista do Tribunal Regional Federal da
4.ª Região, lá no Sul, manda soltar o ex-presidente Lula da Silva, numa insólita
decisão pessoal e unilateral, contraposta à do colegiado que o condenou por
unanimidade e desafiadora ao próprio Supremo, que manteve a sentença. Mesmo
revogada no dia seguinte, a ordem de soltura mostra que o caos anárquico
dominante no Executivo e no Legislativo pode ter chegado, também, ao
Judiciário.
E aí a ferida
se aprofunda e se expande. Multiplica-se por si mesma, como processo
cancerígeno a céu aberto, que pode atingir o infinito e nos destruir como
sociedade. Quando a normalidade foge ou é atacada e as leis falham ou não se
aplicam, resta-nos só a Justiça para não desaparecermos como sociedade
organizada. Mas o que fazer ou onde iremos dar se a Justiça gira como
enlouquecida grimpa, apontando ora ao norte ora ao sul, segundo os ventos?
Que indicação
do que seja “justo” pode nos dar uma Justiça tormentosamente confundida e
enredada na barafunda interpretativa dos incisos ou parágrafos de artigos de
leis que servem para tudo, como os curingas do baralho?
Todo ardil
recorda aquelas iscas em que até os peixes mais ágeis “caem” presos no anzol.
Ou, por acaso, não foi este o caso do juiz Sérgio Moro, que, de férias em
Portugal, assinou um despacho como se em atividade estivesse?
Além de símbolo
da Justiça isenta e ágil, Moro personifica a esperança e a coragem, virou
monumento vivo em que os cidadãos independentes se espelham. Assim, não importa
que tenha mostrado a incompetência do arbitrário desembargador-plantonista. Ao
“morder a isca” (em férias, atuou na área do seu substituto), não terá mostrado
que se despojou da imparcialidade do juiz que decide por aquilo que os fatos
demonstram e que pune pelo que as leis determinam?
Um dos três
deputados do PT autores do habeas corpus a favor de Lula é um respeitado e
respeitável advogado, lúcido ex-presidente da OAB fluminense. Talvez tenha
partido dele a ideia de fazer da astúcia uma ratoeira jurídica que prendesse
qualquer um que farejasse o odor do queijo. A astúcia, porém, não é arma da
justa Justiça.
Tal qual o
Executivo e o Legislativo, o Poder Judiciário é um ente abstrato. Concretos são
os governantes, os legisladores e os juízes que aplicam as leis com vistas a
normalizar a vida em sociedade. Talvez comece aí a confusão dos dias de hoje,
em que cada grupo ou grupelho busca apenas salvar o próprio quintal.
Nesta guerra de
posições para comandar a política, tudo nos distingue da Copa e dos soldados
que Tite organizou e comandou na batalha da Rússia. Nem a silenciosa corrupção
na CBF interferiu em seu trabalho. Eis aí a grande lição da Copa, que supera
até o anárquico caos da política, tão profundo que espreita até o Judiciário.”
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AGD
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