“O protagonismo
dos juízes
POR JOSÉ RENATO
NALINI
Uma constatação
recorrente na comunidade jurídica é a de que o Poder Judiciário assumiu um
protagonismo singular nos últimos tempos. Quem já não ouviu a proclamação
bombástica de que o século 19 foi a era do Parlamento, o século 20 o período do
Executivo e o século 21 seria o século dos juízes?
Essa profunda
mutação no equilíbrio dos Poderes conferiu aparente vantagem ao Judiciário. O
peso crescente das lides judiciais na vida de todos fez de um país como o
Brasil o campeão universal da litigância – não fora já a nação que mais tem
faculdades de Direito, a ponto de suplantar a soma de todas as que existem no
restante do mundo.
Também mercê
dessa inacreditável circunstância, as carreiras jurídicas proliferaram e os
concursos públicos converteram-se em excelente negócio para quem se dispuser a
preparar candidatos aos previsíveis e ultrapassados processos seletivos para
qualquer função pública na área do Direito. Magistratura, Ministério Público,
Defensoria Pública, procuradorias, Polícia Civil, tudo se submete ao mesmo
sistema de aferição da capacidade mnemônica. Grande teste de memória para quem
se dispuser a decorar o volume enciclopédico de legislação, doutrina e
jurisprudência, abundantes e produzidas em escala cada vez mais maior.
Isso leva
autores como Pier Paolo Portinaro a falar em “Estado jurisdicional” e “governo
dos juízes”. Com o acréscimo de que agora, sempre mais frequentemente, se fala
de “democracia judiciária” e de “burocracia guardiã”, quando não, acirrando com
populista desenvoltura, de “despotismo” ou “totalitarismo” judiciário,
“tirania” ou “ditadura dos juízes”.
A democracia
plebiscitária não encontra mais sua contraposição na democracia representativa,
mas na democracia judiciária. É comum criticar a politização do Judiciário,
tendência irreversível a servir como instrumento jacobino de expurgo dos
corruptos ou como vetor de conservação das estruturas constitucionais do Estado
social de Direito.
Além da visão
tendenciosa de parte da doutrina, é importante também contemplar outras
vertentes, até do ponto de vista do juiz, persona a quem velha concepção do que
seja a magistratura recomendou contenção, comedimento, reserva e atitude
discreta nos autos e na vida coletiva. Mandamento descumprido por muitos, o que
levou o CNJ a editar o Provimento 71, de 13/6/2018, com disciplina sobre o uso
de e-mail institucional e frequência às redes sociais.
O juiz é
obrigado a responder a todas as demandas. Embora não possa agir de ofício, a
ele é vedado, quando acionado, deixar de apreciar e conferir solução. Isso não
é fácil quando a lei já não resolve todos os problemas contemporâneos. Embora
ainda exista o “fetiche da lei”, ela já não exaure o fenômeno jurídico. Este é
fato, valor e norma, na visão tridimensional de Miguel Reale.
A lei em
sentido estrito é cada vez mais o fruto de compromissos assumidos por integrantes
de uma espécie de novo feudalismo, pois elaborada por setores muito
específicos, que defendem os próprios interesses, antes de procurar atender às
requisições do bem comum. Por isso a matéria-prima com que trabalham os juízes
– a rigor, a lei! – é cada vez mais fluida, ambígua, incompleta e
contraditória.
Outra
característica da lei contemporânea é que ela não enfrenta as questões
nevrálgicas e polêmicas. Aparentemente, o Parlamento – que se submete à
renovação dos mandatos mediante o periódico exercício do sufrágio – não quer
comprometer sua reeleição. E foge do que possa trazer insegurança eleiçoeira.
Tudo resta,
então, para apreciação judicial. O juiz é uma espécie de “factótum
institucional”. Não se limita mais a dirimir controvérsias, mas resolve
problemas que outros órgãos públicos ou instituições sociais não percebem na
sua gravidade ou não são capazes de enfrentar de modo satisfatório. Ou não
querem, de verdade, encarar, pois poderiam render desconforto quanto à obtenção
de consenso entre os destinatários.
Além do mais, o
Judiciário é gratuito para a maior parte das pessoas. Até empresários conseguem
os favores da Justiça sem custos, para isso bastando declaração de que não
podem arcar com tal dispêndio sem comprometimento de sua renda. O que é muito
relativo.
Contribui para
esse clima a vigência de uma Constituição ora balzaquiana – completa 30 anos em
outubro – pródiga em direitos. Tudo é direito fundamental, tudo merece a tutela
jurisdicional, sempre haverá quem postule e esteja certo de encontrar o
beneplácito da função encarregada pelo sistema de fazer valer os bens da vida.
Expande-se,
portanto, o Poder Judiciário. Cresce e se burocratiza. Há quem se orgulhe dos
100 milhões de processos em curso nos vários tribunais brasileiros, pois isso
seria um termômetro da democracia plena que se vivencia desde 5/10/1988.
Invoca-se a
tese do fortalecimento da independência da magistratura, a consolidação da
cultura dos direitos invioláveis, a revolução das expectativas crescentes. Tudo
isso seria o aspecto ufanista. Entre os fatores patológicos desencadeadores
dessa corrida ao Judiciário, estão a também crescente corrupção das classes
políticas, a ineficiência dos governos e a fragilidade das oposições, que
obrigam a magistratura a desempenhar um papel substitutivo.
Os juízes não
querem assumir o papel dos legisladores. Atuam no vácuo político. Nem querem
administrar. Foram formados à luz do dogma da preservação da discricionariedade
administrativa. O mérito da atuação da administração pública foi, até há pouco,
inexpugnável.
A continuar
essa política de recorrer ao Judiciário para todo e qualquer problema,
incluídos os que poderiam ser solucionados com boa dose de talento para o
diálogo, o sistema sucumbirá. Os juízes estão preocupados com isso. Mas quem
deve ficar ainda mais preocupada é a sociedade brasileira.”
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AGD
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