“Greve ou motim?
POR ALMIR
PAZZIANOTTO PINTO
O movimento
desencadeado por caminhoneiros, sacrificando a vida de milhões de pessoas,
causando prejuízos irrecuperáveis e expondo a fragilidade do governo, deve ser
objeto de análise, conquanto difícil de ser feita agora por nos acharmos sob o
impacto dos acontecimentos.
Exercício do
direito de greve, assegurado pelo artigo 9.º da Constituição, não houve.
Avaliações superficiais tentaram nos convencer de que motoristas autônomos de
caminhões e carretas teriam entrado em greve para reivindicar da Petrobrás a
redução do preço do óleo diesel. Não foi o que aconteceu. A paralisação
caracterizou-se pela voluntariedade, ignorou as organizações sindicais e logo
se espalhou em razão da postura autoritária da empresa, que errou ao subestimar
a força dos adversários.
A mobilização
explodiu de baixo para cima, impulsionada por repetidos aumentos do preço do
óleo diesel. O governo federal, aturdido e incapaz, revelou-se desinformado.
Afinal, era impossível não imaginar, diante da agressiva política da empresa,
insuportável para transportadores autônomos, que, dia mais, dia menos, a
revolta explodiria como panela de pressão sem válvula de segurança.
Distribuição de
combustíveis é atividade essencial (Lei n.º 7.783/1990). Não pode ser
interrompida (Constituição, artigo 9.º). Greve ocorre, segundo a definição
legal, quando há cessação coletiva, total ou parcial, dos serviços prestados ao
empregador. Antes de deflagrá-la o sindicato deve ouvir os trabalhadores em
assembleia geral e definir as reivindicações. Houvesse greve, competia ao
Ministério Público do Trabalho ajuizar dissídio coletivo com o objetivo de
encerrar o movimento (Constituição, artigo 114, § 3.º). Se não o fez, é por não
haver relação de emprego entre caminhoneiros autônomos e Petrobrás. Como não
houve greve, não poderia haver locaute, prática que ocorre quando o empregador
cessa as atividades para frustrar negociação com os empregados.
No caso dos
petroleiros, cujos sindicatos falaram em paralisar refinarias, o Tribunal
Superior do Trabalho fez o que dele se esperava: por decisão liminar da
ministra Maria de Assis Calsing, considerou que havia perigo iminente de greve
política e fixou multa diária no valor de R$ 2 milhões em caso de
desobediência. Os sindicalistas recuaram e o trabalho não foi interrompido.
A Petrobrás,
sociedade de economia mista controlada pela União, com ações nas Bolsas de
Valores, cometeu imperdoável erro de avaliação ao ignorar o movimento e tentar
impor condições a quem não lhe deve obediência. O fato de a Constituição
conceder-lhe o monopólio da refinação do petróleo e da distribuição de diesel,
querosene, gasolina, etanol, gás de cozinha, não lhe dá o direito de ignorar os
consumidores. Ao exercer autoridade imperial, incompatível com a delicadeza da
situação, a direção da empresa causou a maior, mais onerosa e desnecessária
crise das últimas décadas, cujos custos ainda são desconhecidos. A falsa
solução de congelamento pelo período de 15 dias, após extensa sequência de
aumentos diários, acirrou os ânimos e angariou o apoio da opinião pública aos
caminhoneiros.
Para poupar a
Petrobrás o presidente da República chamou a si a responsabilidade. Fê-lo com
precipitação, desconhecimento e ingenuidade. Tanto o presidente Michel Temer
como os ministros palacianos não sabiam o que dizer e o que fazer. Para o
aumento do caos contribuíram os presidentes do Senado e da Câmara dos
Deputados, governadores e candidatos à Presidência da República. Todos
insistiam em apresentar soluções inadequadas aos dois pedidos formulados:
redução do preço do combustível nas bombas e garantia expressa de que não
voltaria a subir nos próximos meses. Durante dez dias a população, desesperada,
acompanhou patéticos monólogos de surdos, com propostas que a todo instante
variavam e se contradiziam. Dirigentes sindicais pelegos e desacreditados, com
dezenas de anos à frente das entidades, tentavam exibir liderança que lhes
falta, desorientados como estavam os membros do governo, entre os quais se
destacavam pela ausência os ministros do Trabalho e de Minas e Energia.
A paralisação de
autônomos não pode ser rotulada de greve, pois greve não foi. Não foi, também,
manifestação pacífica amparada pela Constituição no artigo 5.º, XVI. A partir
do momento em que caminhoneiros e agentes provocadores infiltrados partiram
para a violência nas rodovias e nos postos de reabastecimento, organizaram
bloqueios nas entradas das cidades com delinquentes armados de pedras e
porretes, impediram a circulação de automóveis, causaram o desabastecimento de
gêneros alimentícios e remédios, o que no início teria sido movimento
reivindicatório degenerou em motim.
De tudo quanto
se presenciou restam lições que a prudência recomenda não sejam ignoradas.
Comprovou-se que a economia não deve continuar dependente do transporte sobre
rodas. A construção de rede ferroviária, que interligue o centro do País às
capitais dos Estados e grandes centros produtores, deve integrar o programa dos
candidatos à Presidência. Capital externo, interessado em investir na
construção e modernização de ferrovias, com certeza existirá, desde que se lhe
ofereçam garantias sólidas e duradouras. Como o Banco do Brasil, a Petrobrás
poderá manter a União como acionista controladora. Para ser mais eficiente,
entretanto, deverá perder o privilégio do monopólio e passar a conhecer a dura
realidade do mercado.
Escreveu Gustave
Le Bon: “As multidões são um pouco como a esfinge da antiga fábula, é preciso
saber resolver os problemas que a psicologia delas nos apresenta, ou se
resignar a ser devorado por elas” (em Psicologia das Multidões). Por não saber,
Pedro Parente foi devorado.”
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