“Hora de cair na
real
POR BOLÍVAR
LAMOUNIER
O solavanco
provocado pelo locaute/greve dos caminhoneiros força-nos a fazer algo que há
anos temos tentado evitar: cair na real.
A “real”, o que
é, exatamente? Dito com a simplicidade e a circunspecção que a hora exige, é o
reconhecimento de que o Brasil está perdendo o bonde da História. Na toada em
que temos levado a vida, é óbvio que não iremos a lugar nenhum. Permaneceremos
por muito tempo como um país pobre, extremamente desigual e com o conflito
social atingindo níveis impensáveis.
Não me canso de
repetir que, a continuarem as medíocres taxas de crescimento do PIB que mal e
parcamente temos atingido, levaremos uma geração inteira para dobrar nossa
renda média por habitante, que hoje se situa em torno de US$ 11 mil anuais. E
não se requer um grande esforço de imaginação para perceber que quando
atingirmos essa meta (meta?!) nossa situação social será ainda muito pior que a
dos países europeus que se encontram atualmente um pouco acima ou um pouco
abaixo desse nível. Nossa distribuição de renda será ainda muito pior que a
deles. Nosso sistema educacional, idem. Nosso índice de criminalidade violenta
(número de homicídios por 100 mil habitantes), muitíssimo pior. Nossas
condições de saneamento, sabe Deus. Rezemos para que pelo menos as metrópoles
mais bem aquinhoadas, como São Paulo, estejam livres do pernilongo e do
mosquito Aedes aegypti. E dos escorpiões, cujo número parece ter aumentando
700% nos meios urbanos do País.
Esse é o pano de
fundo sine qua non em termos do qual precisamos nos entender. Para delinear
preliminarmente o entendimento de que necessitamos, se queremos mesmo nos
livrar desse futuro sombrio, penso que três pontos precisam ser considerados: a
agenda de reformas estruturais, as eleições de outubro e certas mudanças para
pior que vêm ocorrendo em nosso sistema político.
Primeiro,
implementar uma agenda de reformas estruturais muito mais abrangentes que as
atualmente em debate. Isso soa para lá de utópico, bem o sei. Como falar em
reformas abrangentes se o Congresso não se dispôs a aprovar nem uma modesta
reforma da Previdência? Mas as reformas virão, cedo ou tarde, pela força das
coisas, a menos que tenhamos realmente, como nação, uma irresistível propensão
ao suicídio. Com um Estado agigantado e ineficiente, corroído até a medula pelo
patrimonialismo e pela corrupção, é evidente que a economia continuará travada,
e almas frágeis tremerão ante o nível dos conflitos sociais a que antes me
referi.
Com todo o
respeito aos senhores e senhoras pré-candidatos, temos de admitir que o elenco
está bastante abaixo do enredo. Pelo lado da sensatez e da experiência, a
exceção é o governador Geraldo Alckmin, mas por ora nada podemos adiantar a
respeito da força de que disporia para lidar com o Congresso. Ciro Gomes (que
foi governador do Ceará) e Jair Bolsonaro, cuja experiência se limita à Câmara
dos Deputados, ostentam traços notavelmente retrógrados tanto na esfera pessoal
– uma inequívoca tendência autoritária – como na do pensamento econômico e
social, e com certeza enfrentarão (enfrentariam) dificuldades ainda maiores no
relacionamento com o Congresso. Álvaro Dias também tem uma experiência
significativa, mas não dispõe de base partidária; e Marina Silva, a meu juízo,
poderia neste momento prestar uma contribuição mais útil ao País no Senado do
que em sua improvável postulação presidencial. Do Congresso, o que esperar
senão mais do mesmo, com baixa renovação numérica e provavelmente nenhuma no
tocante aos perfis políticos?
Claro está que o
panorama eleitoral não é animador, mas o quadro piora bastante se levarmos em
conta certas transformações para pior que se acham em curso na sociedade
brasileira. Refiro-me ao embate entre dois “subsistemas”, o partidário e o das
organizações corporativas. Os partidos políticos, historicamente débeis e
atingidos em cheio pelas investigações de corrupção, conservam alguma
capacidade de atrapalhar, mas nenhuma de contribuir positivamente para a
governabilidade. No polo contrário, o corporativismo generalizado da sociedade
brasileira nunca foi tão evidente – e tão forte. Não percebemos a tempo a
mutação no sistema político brasileiro, cujas unidades reais são organizações
voltadas exclusivamente para seus interesses mais estreitos e imediatos,
defendendo-os acirradamente umas contra as outras e todas contra o governo.
Salta aos olhos que o universo corporativo se enraizou e aumentou visivelmente
seu poder relativamente aos partidos e às instituições políticas de modo geral.
Sem esquecer que um “espírito” corporativo permeia de ponta a ponta as próprias
instituições, sendo que, neste aspecto, o Judiciário aparece como um exemplo
teratológico.
Para ressaltar a
importância da hipótese que venho de expor a respeito do corporativismo, é
imprescindível pôr em relevo dois aspectos da greve dos caminhoneiros.
Primeiro, não me parece exagerado afirmar que o Brasil ficou praticamente sem
governo durante nove dias. Perseguindo seus objetivos particulares, cujo mérito
não tenho como discutir no espaço disponível, fato é que o movimento manteve o
governo e praticamente toda a sociedade na condição de refém. Governo refém não
é governo, é apenas uma aparência de governo. Como foi isso possível? Este é
meu segundo ponto: 20 ou 30 anos atrás, antes de deflagrar uma greve, mesmo os
sindicatos mais poderosos tinham de passar dias e dias preparando-a, fazendo
panfletagem na porta das fábricas, etc. Hoje, um movimento de grande porte pode
ser organizado numa tarde. Estamos na era do celular e do WhatsApp. Com esse
recurso e serviços de inteligência um tanto lerdos, o que parecia impossível
passa a acontecer até com certa facilidade.”
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AGD
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