Por Zé Carlos
No dia 09 de fevereiro de 1916, se tudo foi declarado
corretamente ao cartório e à Igreja, nascia em Bom Conselho, um menino chamado
Carlos. Portanto, se vivo fosse, ele estaria hoje completando 100 anos de
idade. No entanto, ele morreu com 68 anos, e deixou muitas saudades.
Como qualquer menino daquela época, filho de classe média,
ele foi à escola e começou a aprender a ler e a escrever. Não sei se conseguiu
fazer estas duas coisas com desenvoltura nas crianças normais, porque o Carlos,
aos 9 anos, ficou cego.
Até hoje, ninguém sabe, ao certo, o que o cegou. São versões
que não importam mais. Na época, a realidade era apenas que seus pais estavam,
com uma criança em casa, cujo único defeito era não poder usar seus olhos para
ver a realidade da vida.
Indo ao futuro, talvez hoje isto não acontecesse, e saindo
de Bom Conselho naquela época, talvez, seus olhos não tivessem se apagado para
vida. Lamentar? Pode até ser. Tenho certeza de que seus pais e irmãos lamentaram
muito na época. Porém, tenho certeza hoje, de que, quem menos lamentou foi o
Carlos. Isto digo porque convivi com ele durante muito tempo.
Na década de 20 em Bom Conselho, penso que seus pais não
tiveram muito tempo nem para lamentar. A vida se sobrepunha a qualquer
vontade de chorar, desesperar ou reclamar. Ela continuava. Era uma criança, com
10 anos de idade, cega, e que precisava continuar vivendo.
A força da religião deve ter sido muito importante para seus
pais, ao tentarem continuar dando o que podiam àquela criança. Eram 5 irmãos e
todos deveriam sobreviver de alguma forma. A Carlos, foi traçado o seu destino,
pela sua mãe: “Ele fica aqui em casa me
ajudando!”. Certamente, deve ter acrescentado: “Deus quis assim, e assim deve ser.”
E assim foi determinado e assim foi feito. Carlos seria um
empregado doméstico dos seus pais. E deve ter desempenhado a função com
distinção e louvor, pelo que conheci dele. Embora, não estivesse satisfeito com
o que para ele determinaram. Isto foi comprovado aos 17 anos, quando seu pai,
dono de uma padaria, resolveu levar o menino para fazer um trabalho em seu
negócio, que achava ele, não exigia muito da visão. O menino obediente foi, com
todo prazer, usar os braços ao invés dos olhos.
Quando ele voltou para casa, disse ter ouvido sua mãe falar
alto: “Carlos, os pratos não foram
lavados ainda. Vá lavá-los!”. Ao que o menino, já um rapazinho, respondeu:
“Mãe, eu não vou mais lavar pratos, eu
vou trabalhar na padaria, com Pai!” Naquela, época não havia ainda o tratamento
de Papai, ou Painho, Mamãe ou Mainha, muito mais moderno. Mas, isto não
importa, e sim, segundo ele, a raiva e desgosto de sua mãe, depois de se
convencer que Carlos não estava brincando e que realmente iria trabalhar na
padaria. Com os preconceitos que envolvia a classe média daquela época, e hoje
também, sua mãe disse: “Não tive um filho
para ser cassaco de padaria!”.
No entanto, a vontade dele e do pai superaram os
preconceitos maternos, que são perdoáveis, porque mãe é mãe, e ele foi servir a
outro senhor que era o seu pai. Inicialmente, tudo era uma brincadeira de ajuda
de filho, mas, Carlos, queria viver sua vida, como todos os outros seus colegas
de padaria. Exigiu receber uma paga como os outros, e passou a gerir o seu
futuro.
Eu, tempos depois, pensei e pensei sobre o significado do
trabalho para as pessoas e tentei relacionar estes pensamentos com a batalha do
Carlos pela sobrevivência. E, talvez com um pouco de exagero posso dizer que, o
trabalho trouxe seus olhos de volta, ou talvez, de uma forma mais realista, ele
descobriu que não precisava mais deles para viver e ser feliz.
E assim continuou Carlos como um exímio cassaco de padaria,
até descobrirem que eram poucas as tarefas que ele não poderia exercer em seu
novo ofício. Em algumas até se revelava que, o que é um defeito para uma
atividade pode ser uma virtude para outra. E assim foi ele ganhando a confiança
do pai, e até a da mãe, que se acalmou quando o viu alegre e lampeiro, ao
chegar do duro trabalho.
Dentro em pouco ele dominava todas as tarefas e começou a
sonhar mais alto ainda. Com a convivência com seus colegas de trabalho, nem
sempre dotados do mais alto senso de pudor, ele descobriu que o mundo era muito
cheio de perigos e emboscadas, e de brincadeiras, não em relação à falta dos
seus olhos, mas, em relação à sua sexualidade.
Não deu outra. Já em plena luta pela vida, ganhando seu
dinheirinho suado, querendo ter uma vida plena, resolveu se casar. Se, nesta
época de donzelices perenes até o casamento, já era difícil para pessoas
normais, como o Carlos iria encarar esta importante missão em sua vida. Mas,
como sói acontecer, quando a vontade se apresenta, os meios parecem aparecer de
alguma maneira. E em seu caso, foi mais fácil.
Sua mãe, vendo o que o angustiava, encontrou uma solução,
que se mostrou a mais importante da vida dele e de todos que o conheceram.
Chamou Carlos e deve ter dito mais ou menos o seguinte: “Carlos, eu sei que você está tentando se casar, eu acho até bom que
seja assim. Você já tem mais de 30 e precisa agir rápido. Por que você não casa
com a Flora?”
Flora era a filha da lavadeira da mãe de Carlos e ia, de
quando em vez, entregar a roupa, limpa, macia e cheirosa na casa dela. Eu não
posso dizer, e nem ele nunca me disse se ele já tinha alguma paquera com Flora.
Eu penso que sim, no entanto, isto não importa, e sim que Flora foi realmente a
flor que Carlos precisava para seguir lutando pela vida.
Casaram em 1947, sob as bênçãos do Padre Alfredo que era seu
padrinho, e começaram a ter filhos em 1948. Eu não lembro bem, mas, dizem que
quando o primeiro filho nasceu era um domingo de carnaval, e na hora exata “As
Moreninhas” iam passando e cantando: “Minha
boca fez assim, que coisa louca....”. Coincidentemente, hoje, ao completar
100 anos de seu nascimento é uma terça-feira de carnaval.
E os fihos foram aparecendo às pencas, como era comum entre
aqueles que seguiam fielmente a religião obedecendo a Deus quando disse: “Crescei e multiplicai-vos!” . Mas com as
mesmas consequências comuns em não se evitar filhos, naquela época: A
mortalidade infantil. Flora engravidou 9 vezes, mas, só vingaram 4, sendo 3 abortos e 2 anjinhos. Tenho certeza, todos
tiveram a mesma importância em suas vidas.
No entanto, pode-se dizer que os que vingaram foram suficientes para o Carlos lutar ainda mais e
transformar-se no melhor pai do mundo. Eu posso garantir que sua vida girava em
torno de sua família, sua religião e seu trabalho, sem querer dizer que foi um
“puritano” em passagem por aqui. Era apenas um ser humano normal, com um
objetivo em mente e uma vontade enorme em atingi-lo.
E, não caberia aqui fazer um detalhamento de sua vida, pois
não caberia nesta simples homenagem a Seu Carlos, como era conhecido em Bom
Conselho. Quem sabe, um dia eu escreverei sobre tudo de bom que ele me ensinou?
Desculpem, mas vi agora que não disse que Carlos e Flora
eram meus pais e também de Maria de Lourdes, Luiz Cláudio, Maria do Socorro,
avós de Carlos Frederico, Flávia, Thiago, Carla, Carlos, Nayara, Carlos Vítor, Adriana,
Aline e bisavós de Iasmim, Ana Sophia, Bárbara, Maria Aline, Davi e Miguel. Hoje, a
família habita todo o Brasil, de Rondônia até São Paulo, passando por Caruaru e
Recife.
Todos,
inclusive os que já estão no céu, junto a eles, sentem orgulho do velho e amado
Carlos, o parabenizam e se alegram pelos seus 100 de vida, como um exemplo a
ser seguido.
Bela homenagem a vovô Carlos! Saudades!!
ResponderExcluirComentário de Aline Cordeiro: Trouxe lagrimas aos olhos. A sabedoria de Vovo Carlos continua a ser transmitida de geraçao a geraçao.
ResponderExcluirBelíssima homenagem a um homem de caráter irretocável, amante da família e sobretudo um ser humano magnífico!!!! Tive o privilégio de ter convivido com vovô Carlos!!!! Tenho orgulho de ter herdado seu nome e seu cabeção!!!! Um beijo, vovô e parabéns pelo seus 100 anos!!!
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