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segunda-feira, 20 de agosto de 2012

EU JÁ FUI NINGUÉM...





Por Carlos Sena (*)

A vida do interior não é só rica por conta da tranquilidade. Viver no interior tem das riquezas maiores: a construção das relações de vizinhança – coisa difícil de acontecer em nossos tempos, principalmente nas grandes cidades. Lembro que meu ritual de infância/adolescência lá na minha Bom Conselho de Papacaça era, basicamente, entrando e saindo nas casas dos nossos vizinhos. Duas dessas casas eu não posso jamais esquecer: a de Seu Adnísio Padilha e a de Dona Duquinha. Adnísio de Lourdes Miranda. Duquinha de Cabinéia (designação ao seu ex-marido que era cabo e se chamava Enéias). No interior era assim como ainda acho que seja hoje. As pessoas são tão pessoas que a gente as identifica pela relação. Daí Lourdes de Adnísio, Pretinha de Zé Barros, Duquinha de Cabinéia. Eu, Carlinhos, era sempre chamado de Carlinhos de Dona Pretinha e assim por diante. Esse era o clima no qual as nossas relações eram construídas e, desta forma, a gente normalmente adentrava na casa dos vizinhos sem maiores cerimônias. Na casa de Dona Lourdes de Adnísio eu tinha passagem livre. Era como se fosse um da família e ainda hoje nos sabemos assim e por isto eu sempre adentrava sem bater na porta. A campainha de lá se chamava “Branquina” – uma cadela esperta que sempre se encarregava de avisar que alguém estava entrando ou na porta querendo prosa. Já na casa de Duquinha de Cabinéia eu sempre batia. Duquinha era separada do Cabinéia e sua casa era um verdadeiro entra e sai de tanto filho que ela, coitada, já fechava a porta pra ver se controlava um pouco mais o fluxo de pessoas. Muitas das vezes, retornando tarde da noite da escola, batia em sua porta para prosear com Beta e Inês – duas das suas tantas filhas. Quando eu batia na porta, alguém, naturalmente vinha abrir. Abria o postigo (janelinha que fica acoplada à porta evitando que se lhe abra por completo) e dizia para alguém que perguntava “quem é?” – “Não é ninguém não, é Carlinho”! Eu entrava todo serelepe e já ia dizendo: “não é ninguém não sou eu”! Chegou a um ponto que quando eu batia na porta já incrementava gritando: “vem abrir a porta que não é ninguém não sou eu”!

Assim, fico pensando: como foi bom aquele tempo em que eu não era ninguém. Hoje, morando na cidade grande, o povo diz que eu “venci”, que sou gente. Quando eu passei no vestibular o povo dizia que eu ia ser doutor, mas eu nunca me convencera daquilo. Agora eu sei que eu estava certo. Como “doutor” que o povo diz que eu sou eu não me emociono, não guardo lembranças marcantes. Como “NIGUÉM”, SIM. Por isto volto sempre à terrinha vendo onde o doutor se perdeu de “NINGUÉM”. Guardo essas lembranças que se contradizem às que a gente tenta construir por aqui, na selva de pedra. Convivendo com gente metida a doutora, mas que não passam de medíocres personalidades que se estabelecem sem o “verniz” da competência, mas da influência que se alimenta da clientela de “amigos para sempre” entre aspas. Na minha terra mesmo a gente sendo NINGUÉM, parece ser tudo. Aqui, mesmo a gente sendo tudo querem nos reduzir a ninguém pela hipocrisia que nutre as relações interesseiras, clientelistas, burocráticas. O melhor é que aqui sou feliz do meu jeito, pela certeza de que um dia Já fui “ninguém”...

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(*) Publicado no Recanto de Letras em 28/07/2012

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