Por Carlos Sena (*)
A vida do interior não é só rica
por conta da tranquilidade. Viver no interior tem das riquezas maiores: a
construção das relações de vizinhança – coisa difícil de acontecer em nossos
tempos, principalmente nas grandes cidades. Lembro que meu ritual de
infância/adolescência lá na minha Bom Conselho de Papacaça era, basicamente,
entrando e saindo nas casas dos nossos vizinhos. Duas dessas casas eu não posso
jamais esquecer: a de Seu Adnísio Padilha e a de Dona Duquinha. Adnísio de
Lourdes Miranda. Duquinha de Cabinéia (designação ao seu ex-marido que era cabo
e se chamava Enéias). No interior era assim como ainda acho que seja hoje. As
pessoas são tão pessoas que a gente as identifica pela relação. Daí Lourdes de
Adnísio, Pretinha de Zé Barros, Duquinha de Cabinéia. Eu, Carlinhos, era sempre
chamado de Carlinhos de Dona Pretinha e assim por diante. Esse era o clima no
qual as nossas relações eram construídas e, desta forma, a gente normalmente
adentrava na casa dos vizinhos sem maiores cerimônias. Na casa de Dona Lourdes
de Adnísio eu tinha passagem livre. Era como se fosse um da família e ainda
hoje nos sabemos assim e por isto eu sempre adentrava sem bater na porta. A
campainha de lá se chamava “Branquina” – uma cadela esperta que sempre se
encarregava de avisar que alguém estava entrando ou na porta querendo prosa. Já
na casa de Duquinha de Cabinéia eu sempre batia. Duquinha era separada do
Cabinéia e sua casa era um verdadeiro entra e sai de tanto filho que ela,
coitada, já fechava a porta pra ver se controlava um pouco mais o fluxo de
pessoas. Muitas das vezes, retornando tarde da noite da escola, batia em sua
porta para prosear com Beta e Inês – duas das suas tantas filhas. Quando eu
batia na porta, alguém, naturalmente vinha abrir. Abria o postigo (janelinha
que fica acoplada à porta evitando que se lhe abra por completo) e dizia para
alguém que perguntava “quem é?” – “Não é ninguém não, é Carlinho”! Eu entrava
todo serelepe e já ia dizendo: “não é ninguém não sou eu”! Chegou a um ponto
que quando eu batia na porta já incrementava gritando: “vem abrir a porta que
não é ninguém não sou eu”!
Assim, fico pensando: como foi
bom aquele tempo em que eu não era ninguém. Hoje, morando na cidade grande, o
povo diz que eu “venci”, que sou gente. Quando eu passei no vestibular o povo
dizia que eu ia ser doutor, mas eu nunca me convencera daquilo. Agora eu sei
que eu estava certo. Como “doutor” que o povo diz que eu sou eu não me
emociono, não guardo lembranças marcantes. Como “NIGUÉM”, SIM. Por isto volto
sempre à terrinha vendo onde o doutor se perdeu de “NINGUÉM”. Guardo essas
lembranças que se contradizem às que a gente tenta construir por aqui, na selva
de pedra. Convivendo com gente metida a doutora, mas que não passam de
medíocres personalidades que se estabelecem sem o “verniz” da competência, mas
da influência que se alimenta da clientela de “amigos para sempre” entre aspas.
Na minha terra mesmo a gente sendo NINGUÉM, parece ser tudo. Aqui, mesmo a
gente sendo tudo querem nos reduzir a ninguém pela hipocrisia que nutre as
relações interesseiras, clientelistas, burocráticas. O melhor é que aqui sou
feliz do meu jeito, pela certeza de que um dia Já fui “ninguém”...
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(*) Publicado no Recanto de
Letras em 28/07/2012
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