Por Zezinho de Caetés
Há algum tempo eu estou debruçado nesta Lei que, aprovada no
Congresso, espera a sanção da presidenta, o que todos esperam que ela fará, sem
cortes e que trata das cotas sociais e raciais.
Eu já li o texto e espero ainda voltar ao tema, depois. Minha abordagem aqui é
apenas para apresentar um texto do Demétrio Magnoli que foi publicado no
Estadão no último dia 16, com o título de “’Os
amigos do povo’ contra o mérito”
Igual a mim e igual a qualquer pessoa de bom senso neste
país e que tenha passado pelos bancos de alguma universidade pública, como fiz
eu, alguém pode ficar calado diante do absurdo de que a partir desta Lei, 50%
das vagas abertas na universidade pública sejam dedicadas aos que tenham uma
renda familiar de 1,5 salários mínimos. E aqui, vamos ser condescendentes ao
extremo e pensar que nossas escolas públicas sejam as melhores do país e que
agora todos com renda iguais ou abaixo deste limite sejam “gênios da raça”, com se diz, e possam entrar na universidade pelos
seus próprios méritos (sem perguntar, então por que as cotas?), ainda teríamos
algumas questões a levantar.
E aqueles que estudam em escola pública e que tiveram a “má sorte” de ter uma renda familiar maior do que esta,
como ficariam? Teriam ou não direito a competir com os sortudos cujas famílias ganham menos do que a dele? E
lhes dou o meu exemplo, embora um tanto do passado. Eu fui para a escola
pública não porque meu pai não podia pagar uma escola privada, e sim porque a
escola pública que eu consegui era melhor do que a escola privada (dar-me
vontade de fazer trocadilho com privada, mas, deixa para lá).
Mas, o absurdo não termina aí, comigo (apenas o exemplo) tendo que competir
com os outros 50% apenas por ser mais bem aquinhoado. Deste privilegiado grupo
de 50% pobres, serão incluídos metade que pertença aos negros, pardos e
indígenas. Mais uma vez, eu, por ter a má sorte de ter nascido branco, serei
penalizado. E eu não sou índio. E lá vai, hoje, um adolescente branco, que
estudou em escola pública, concorrer com os negros, índios e pardos que
cursaram um escola privado (pois, há muitos que pertencem a estes grupos na
escola privada).
Enfim, o ingresso em nossas universidades públicas virará um
verdadeiro samba do crioulo doido, de fazer inveja àquele que conhecemos. É por
estas e outras que concordo com a Lucinha Peixoto (ela anda meio sumida, não
é?) quando diz que a maior ofensa que ela poderia encarar, seria entrar na
universidade por este sistema e correr o risco de alguém apontá-la na rua e
dizer:
- Lá vai uma doutora cotista!
Ainda voltarei a este tema, mas, por enquanto fiquem com o
texto do jornalista, e eu nem volto, pois irei procurar uma forma de ficar
pobre e se possível me tornar pardo ou comprar um cocar de índio. Se a lei
pega, dentro de duas gerações todos ganharemos um salário mínimo e
pertenceremos a estas etnias. Há quem prefira...
“A assinatura da deputada Nice Lobão ─ campeã em faltas na Câmara e
esposa do ministro Edison Lobão, protegido de José Sarney ─ no projeto de lei
de cotas nas instituições federais de ensino superior e médio é um desses
acasos repletos de significados. Por intermédio de Nice, a nova elite política
petista se abraça às elites tradicionais numa santa aliança contra o princípio
do mérito. Os aliados exibem o projeto como um reencontro do Brasil consigo
mesmo. De um modo perverso, eles têm razão.
Nunca antes uma democracia aprovou lei similar. Nos EUA as políticas de
preferências raciais jamais se cristalizaram em reservas de cotas numéricas.
Índia e África do Sul reservaram parcelas pequenas das vagas universitárias a
grupos populacionais específicos. O Brasil prepara-se para excluir 50% das
vagas das instituições federais da concorrência geral, destinando-as a
estudantes provenientes de escolas públicas.
O texto votado no Senado, ilustração acabada dos costumes políticos em
voga, concilia pelo método da justaposição as demandas dos mais diversos
“amigos do povo”. Metade das vagas reservadas contemplará jovens oriundos de
famílias com renda não superior a 1,5 salário mínimo. Todas elas, em cada
“curso e turno”, serão repartidas em subcotas raciais destinadas a “negros, pardos
e indígenas” nas proporções de tais grupos na população do Estado em que se
situa a instituição. Uma extravagância final abole os exames gerais,
determinando que os cotistas sejam selecionados pelas notas obtidas em suas
escolas de origem.
Gueto é o nome do jogo. Só haverá uma espécie viciada de concorrência
entre “iguais”: alunos de escolas públicas concorrem entre si, mas não com
alunos de escolas privadas. Jovens miseráveis não concorrem com jovens pobres.
“Pardos” competem entre si, mas não com “brancos” ou “negros”, detentores de
suas próprias cotas. Cada um no seu quadrado: todos têm um lugar ao sol ─ mas o
sol que ilumina uns não é o mesmo que ilumina os outros. No fim do arco-íris,
cada cotista portará o rótulo de representante de uma minoria oficialmente
reconhecida. O “branco” se sentará ao lado do “negro”, do “pardo”, do
“indígena”, do “pobre” e do “miserável” ─ e todos, separados, mas iguais,
agradecerão a seus padrinhos políticos pela vaga concedida.
Nice Lobão é apenas um detalhe significativo. O projeto reflete um
consenso de Estado. Nasce no Congresso, tem o apoio da presidente, que prometeu
sancioná-lo, e a bênção prévia do STF, que atirou o princípio da igualdade dos
cidadãos à lixeira das formalidades jurídicas ao declarar a constitucionalidade
das cotas raciais. O Estado brasileiro desembaraça-se do princípio do mérito
alegando que se trata de critério “elitista”. Na verdade, é o avesso disso: a
meritocracia difundiu-se no pensamento ocidental com as Luzes, junto com o
princípio da igualdade perante a lei, na hora do combate aos critérios
aristocráticos de promoção escolar e preenchimento de cargos no serviço
público. Naquele contexto, para suprimir a influência do “sangue azul” na
constituição das burocracias públicas, nasceram os concursos baseados em
exames.
O princípio do mérito não produz, magicamente, a igualdade de
oportunidades, mas registra com eficiência as injustiças sociais. Os
vestibulares e o Enem revelam as intoleráveis disparidades de qualidade entre
escolas privadas e públicas. Entretanto, revelam também que em todos os Estados
existem escolas públicas com desempenho similar ao das melhores escolas
particulares. A constatação deveria ser o ponto de partida para uma revolução
no ensino público destinada a equalizar por cima a qualidade da educação
oferecida aos jovens. No lugar disso, a lei de cotas oculta o fracasso do
ensino público, evitando o cotejo entre escolas públicas e privadas. Os “amigos
do povo” asseguram, pela abolição do mérito, a continuidade do apartheid educacional
brasileiro.
O ingresso em massa de cotistas terá impacto devastador nas
universidades federais. Por motivos óbvios, elas estão condenadas a espelhar o
nível médio das escolas públicas que fornecerão 50% de seus graduandos. Hoje
quase todos os reitores das federais funcionam como meros despachantes do poder
de turno. Mesmo assim, eles alertam para os efeitos do populismo sem freios. O
Brasil queima a meta da excelência na pira de sacrifício dos interesses de
curto prazo de sua elite política. Os “amigos do povo” convertem o ensino
público superior em ferramenta de mistificação ideológica e fabricação de
clientelas eleitorais.
No STF, durante o julgamento das cotas raciais, Marco Aurélio Mello
pediu a “generalização” das políticas de cotas. A “lei Lobão” atende ao apelo
do juiz que, como seus pares, fulminou o artigo 208 da Constituição, no qual
está consagrado o princípio do mérito para o acesso ao ensino superior. Mas a
virtual abolição do princípio surtirá efeitos em cascata na esfera do
funcionalismo público, que interessa crucialmente à elite política. As próximas
leis de cotas tratarão de desmoralizar os concursos públicos nos processos de
contratação, nos diversos níveis de governo.
A meritocracia é o alicerce que sustenta as modernas burocracias
estatais, traçando limites ao aparelhamento político da administração pública.
Escandalosamente, a elite política brasileira reserva para si a prerrogativa de
nomear os ocupantes de centenas de milhares de cargos de livre provimento, uma
fonte inigualável de poder e corrupção. A ofensiva dos “amigos do povo” contra
o princípio do mérito tem a finalidade indireta, mas estratégica, de perpetuar
e estender o controle dos partidos sobre a administração pública.
O país do patrimonialismo, do clientelismo, dos amigos e dos favores
moderniza sua própria tradição ao se desvencilhar de um efêmero flerte com o
princípio do mérito. Nice Lobão é um retrato fiel da elite política remodelada
pelo lulismo.”
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