Clarice Lispector |
Por Carlos Sena (*)
Manhã de carnaval. Era uma segunda-feira e pequenos movimentos começavam acordar no entorno da Praça Maciel Pinheiro. Ouvi um apito imaginário nos arredores e pensei que fosse um frevo de bloco que estivesse ensaiando seu lirismo. Não! Era ela que se aproximava da praça como que conduzida pela atmosfera lúdica, bucólica, alegre daquele segundo dia de carnaval em Recife. Sentou-se num banco da praça e com toda graça tirou uma dália do jardim, depois mais uma e assim outras e colocou no seu cabelo. Ela tinha um semblante meio triste, mas se percebia claramente sua intimidade com aquele momento que lhe deixava esfuziante e feliz, ao que tudo fazia crer. De repente, um clarim entoa a saída de um bloco nas imediações da Rua Nova. Anunciando que “Vassourinhas” (das mais importantes agremiações carnavalescos do Recife) estava por ali. Ela não pestanejou. Vestidinho rodado, enfeitada de adálias, seguiu aquela menina-moça serelepe atendendo ao chamado do clarim de momo. Saiu desembestada pela Rua da Imperatriz dando a entender que Vassourinhas fosse seu bloco preferido. Vendo esse movimento, senti-me compelido por aquela menina tão animada, embora de aspecto triste, e segui seu itinerário. Imaginei que fosse mesmo Vassourinhas que, coincidentemente é meu preferido, como era o dela, eu imaginei.
Ao chegar à Ponte de Ferro (cartão postal do centro do Recife), uma multidão já se acotovelava. Não eram dez horas da manhã, mas havia gente “a dar com pau” entregue aos líricos frevos de bloco. Lembro de um refrão cantado a centenas de vozes: “Na Rua da Imperatriz, eu era muito feliz, vendo o bloco desfilar, acorda Apolônio...” Comecei a cantar e, emocionado, me perdi dela. Contudo, entendi que, conhecendo o Recife como dava a entender, mesmo não sendo maior de idade, saberia voltar pra casa na Praça Maciel Pinheiro. Eu não tinha certeza que morasse ali, mas algo me garantia por dentro que fosse então relaxei e continuei cantando meu frevo de bloco preferido e outros mais.
Tomei umas e outras e esqueci que naquela segunda-feira era dia de trabalho. Eu trabalhava num comércio cujos donos eram de origem judia e não nos davam feriado nem mesmo no carnaval. Voltei às pressas e, surpreendentemente, lá vai aquela menina conduzida por uma mulher que mais lhe parecia ser irmã ou então empregada da família. Pude vê-la mais de perto. Fiz um ar de riso, mas ela me olhou cheia de dúvidas ignorando quem eu fosse e com razão. Mesmo assim, cumprimentou-me com um riso tímido, logo encerrado com um puxão que aquela mulher lhe dera pelo braço. – Como é o nome dessa menina, indaguei à mulher. – Clarice, respondeu, mas logo se retirou e entrou num sobrado bonito que fica numa esquina que dava a frente da varanda para a praça. Nesse dia, o meu patrão nos liberou mais cedo, às 16 horas. Afinal, o movimento não era bom por conta do carnaval e aquele “judeu” me deu folga da padaria. Fiquei por ali, pois essa praça era e ainda é até hoje um dos grandes focos de folia do nosso carnaval. Pra minha surpresa, vejo Clarice na minha frente sentadinha num banco da praça. Do alto da varanda do casarão, uma pessoa “pastorava” aquela menina linda e triste ao mesmo tempo – conjugação não muito comum de encontrar numa menina meio moça. Não tive dúvidas. Cheguei pertinho dela e fiquei, discretamente, “piruando” o que ela estava fazendo. Ela estava desenhando cenas do carnaval, inspirada na manhã em que nos divertimos na Rua Nova ao som de Vassourinhas. Rabiscava direitinhos a rua estreita, os enfeites de carnaval (hoje decoração), as pessoas, os lança-perfumes, as serpentinas, etc. Embaixo, escrevia um poema que não deu pra ler, pois sua letra não era legível. Deixa-me ler esse poema, perguntei. – Não, me respondeu ao mesmo tempo comprimindo o caderno sobre seu corpo para que eu, de fato, não lesse. Clarice de quê, perguntei. Lispector, respondeu e saiu correndo direto pra sua casa. Nunca mais eu a vi. Muito tempo depois, encontrei Clarice Lispector numa entrevista na TV Cultura e me lembrei de tudo. Era ela sim, pois seu rosto embora modificado pelo tempo permanecia com os mesmos traços entremeados pelo olhar triste e de difícil sorriso, igualzinho ao que eu vi naquela segunda-feira de carnaval... Subitamente um barulho ensurdecedor me sacode. O coração batia forte por conta do susto daquela moto na porta da minha casa. Maldita moto que não me deixou completar tão lindo sonho com minha escritora preferida CLARICE LISPECTOR.
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(*) Publicado no Recanto de Letras em 09/12/2011
PARABENS CARLOS SENA,EXCELENTE MATÉRIA,MISTURA DE ROMANTISMO,SAUDOSISMO,ENFIM LENDO NOS PRENDEMOS NA NARRATIVA HÁ PARTIR DO INICIO DE UMA HISTORIA QUE NOS LEVA AOS BONS TEMPOS AINDA QUE IMAGINÁRIOS.
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