“MMA no STF
Por José Nêumanne
Na sessão plenária do Supremo
Tribunal Federal da quinta-feira 26 de outubro, dois membros daquela Corte que
se jacta de ser colenda (digna de acatamento e veneração, respeitável), Luís
Roberto Barroso e Gilmar Mendes discutiram como se estivessem num botequim da
Lapa boêmia no Rio ou numa charla de peões no Pantanal.
O episódio escancarou o antagonismo
de ideias entre eles, mas também é eloquente no que diz respeito ao conceito
que os dois têm de sua missão naquele colegiado. Ambos estão frequentemente em
lados opostos nos julgamentos relacionados aos escândalos de corrupção no País,
nos quais a Corte se tem mostrado dividida. Barroso é da Primeira Turma, que
produz decisões majoritárias mais severas, nas quais ele é normalmente
acompanhado por Rosa Weber e Luiz Fux. O outro, também presidente do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) e da Segunda Turma do STF, produz sempre
jurisprudência menos punitiva.
Barroso, que tinha uma próspera
banca de advocacia criminal no Rio, tornou-se uma espécie de cruzado do combate
à corrupção nos moldes defendidos por procuradores, especialmente os da
Operação Lava Jato, e juízes federais, tais como Sergio Moro, de Curitiba,
Marcelo Bretas, do Rio, e Vallisney de Souza Oliveira, de Brasília.
Gilmar Mendes, procurador de
origem, indicado para a cúpula do Judiciário pelo ex-presidente tucano Fernando
Henrique na época em que foi advogado-geral da União, tem protagonizado casos
polêmicos de concessão de habeas corpus a condenados de seu convívio pessoal.
Soltou o “rei dos ônibus” do Rio, Jacob Barata, de cuja filha foi padrinho de
casamento. Negou-se ainda a se considerar impedido ao julgar (favoravelmente) o
pedido de liberdade do empresário Eike Batista, cliente da banca advocatícia de
Sérgio Bermudes, ao qual é associada sua mulher, Guiomar Mendes, responsável
pelos negócios da sociedade na capital federal, onde o marido pontifica. Alegou
que a consorte não participava ativamente da defesa do notório cliente para
dizer-se em paz com a consciência quando decidiu livrar o cliente de Bermudes
dos incômodos do inferno prisional brasileiro. Não se pode, contudo, atribuir a
Sua Excelência – que leva muito em conta sua condição de “supremo”, conforme já
declarou publicamente – um vezo exclusivo de libertar apenas alguns
privilegiados participantes de seu convívio familiar. O ministro, aliás,
contestou vivamente que ser padrinho de casamento de alguém estabeleça algum
laço de família. Sua disposição de conceder habeas corpus solicitados ao
Supremo é ampla, geral e irrestrita, como pedia a esquerda que a anistia fosse,
em priscas eras do regime de arbítrio dos militares.
Ironias à parte, o dr. Mendes
leva em conta em seus julgamentos uma sólida convicção garantista, ou seja,
considera-se um vigilante defensor dos direitos individuais dos cidadãos
levados às barras dos tribunais para pagar por eventuais delitos cometidos. O
dr. Barroso, quando foi escolhido para o pináculo profissional, era tido como
um criminalista bem sucedido que tinha tudo para seguir a mesma linha
ideológica do ponto de vista jurídico. Qual não foi, contudo, a surpresa geral,
quando se tornou o martelo sempre disponível para quebrar a sólida ossatura que
a corrupção endêmica acumulou em anos de foro. Mendes assumiu a postura de
soltador-geral da República. Foi ele, por exemplo, o principal protagonista do
histórico (no pior sentido possível) julgamento em que a chapa Dilma-Temer,
reeleita em 2014, foi absolvida em julgamento no TSE não por insuficiência,
como é tradição no complicado cipoal judiciário nacional, mas por excesso de
provas. O dr. Barroso tem percorrido o Brasil em vilegiatura para pregar perseguição plena aos
corruptos em geral, neste momento tratados como se fossem os únicos
responsáveis por todos os males que assolam a República.
Não se iluda, contudo, o leitor
imaginando que os dois ilustres varões tenham trocado insultos disfarçados em
metáforas e eufemismos por causa dessa nobre missão de punir culpados e
garantir direitos de quem não deve ser apenado se não houver culpa comprovada,
com contraditório irrestrito e obediência a todos os recursos garantidos pela
leniente legislação criminal brasileira, particularmente quando tratam de
cidadãos abonados que possam ter suas querelas julgadas na Praça dos Três
Poderes. Os motivos da transformação do STF em MMA foram pessoais, sem conexão
alguma com elevados conceitos de jurisprudência.
Por falar na dita cuja palavra
que encerra o parágrafo anterior, o carioca Barroso disse que o mato-grossense
Gilmar “vai mudando a jurisprudência de acordo com o réu” e que promove não o
Estado de Direito, mas um “Estado de compadrio”. Também afirmou que o colega tem
“leniência em relação à criminalidade de colarinho branco”. Tratar essa
acusação como mera farpa, como o fizeram os noticiaristas da nada republicana
peleja, é uma imprópria licenciosidade de estilo.
O “garantista” Gilmar Mendes, por
sua vez, atribuiu ao “punitivista” Barroso a pecha de fazer “populismo com
prisões”. Gilmar também ironizou o fato de o desafeto colega ter defendido
“bandido internacional” – em referência indireta ao caso do italiano Cesare
Battisti, de quem Barroso foi advogado antes de integrar a Corte. Mais do que
grosseira, a acusação é absolutamente imprópria. Em primeiro lugar, Barroso não
era ministro do Supremo quando defendeu o terrorista italiano, impropriamente
definido na imprensa como “ativista” ou “ex-ativista”. E, na condição de
profissional do Direito Criminal, não seria ético negar defesa nem ao réu menos
qualificado. Não há réus bons ou maus, como são definidos os ladrões condenados
à crucificação junto com o Cristo. Os réus são apenas e tão somente réus e
todos, sem exceção, têm direito a ampla defesa. O comentário mostra que o dr.
Gilmar é muito leniente em relação às próprias suspeições, mas exigente demais
em relação às alheias.
A discussão entre eles ocorreu em
julgamento sobre a extinção do Tribunal de Contas dos Municípios do Ceará
(TCM-CE), quando um falou mal do Estado de origem do outro. De forma
desrespeitosa, Mendes usou contra o adversário a crise que aflige o Rio, cidade
dele. E Barroso usou a condição de mato-grossense do opoente de forma
preconceituosa.
“Todos nós presenciamos e
lastimamos o ocorrido, sem definir quem é culpado e quem não é culpado”,
comentou Marco Aurélio Mello, ressaltando que tem “inimizade capital” com um
dos interlocutores. Marco Aurélio é desafeto do ministro Gilmar Mendes. No ano
passado, Gilmar Mendes sugeriu o impeachment de Marco Aurélio, depois de este
haver afastado o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) da presidência da Casa em
medida liminar. Em setembro deste ano, em entrevista à Rádio Guaíba, Marco
Aurélio disse que Gilmar passou de “todos os limites inimagináveis”,
acrescentando: “Caso estivéssemos no século XVIII, o embate acabaria em duelo e
eu escolheria um arma de fogo, não uma arma branca”.
Na véspera das lutas de MMA no
Ibirapuera em São Paulo, lugar mais apropriado para os atritos dos dois, a
Nação também ficou estupefata ao ser informada de que, a pretexto de homenagear
os funcionários do Poder Judiciário, a presidente do STF, Cármen Lúcia, que não
se cansa de disputar com os outros ministros o protagonismo do baixo nível generalizado,
decretou mudança de um feriado funcional de sábado para sexta.
Uma das missões que Lula, Dilma e
Temer assumiram para fragilizar a democracia e a credibilidade da República
perante o cidadão que paga a conta tem sido realizada plenamente. O Supremo
virou um ringue de combates ideológicos e partidários e perdeu o respeito da
população. Mas, justiça seja feita, essa desmoralização vem de longe: Celso de
Mello foi nomeado por Sarney por indicação personalíssima de Saulo Ramos; Marco
Aurélio, pelo primo, Collor de Mello, o carcará sanguinolento; e Gilmar, por
Fernando Henrique. A democracia brasileira merecia melhor sorte.”
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