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terça-feira, 16 de outubro de 2018

O formidável ritual democrático




        
Por Roberto DaMatta

Quando Max Weber fala de poder ele faz distinções importantes para a compreensão da democracia. Um regime político centrado numa premissa revolucionária, pois é o único que periodicamente confirma pessoas em seus cargos, o que produz uma instabilidade estrutural paradoxalmente regulada.

Tanto isso é verdade que, quando se dá um golpe, se fala em tudo, menos em eleição. Esse grande rito garantidor de mudanças por dentro, esse formidável teste que une pessoas comuns a altos cargos necessários à administração pública. Política e sociedade estão juntas nas democracias e divorciadas nas ditaduras.

Weber é claro quando distingue poder de dominação. Algo básico para entender o governo dos humanos pelos humanos – esses bichos cujo programa é não ter programa sendo, por isso mesmo, dependente do que Weber chamou de legitimação. A dimensão que domestica o monopólio da força, justificando-a e racionalizando-a numa autoridade o que evita o caos ou, como dizia um outro clássico, a “guerra de todos contra todos”.

A dominação comunica quem manda e quem obedece. A passagem da força bruta para a dominação mediada e racionalizada por um sistema religioso ou jurídico é o que chamamos de sistema cultural – uma ordem capaz de lidar com suas diferenças, tomando-as como “naturais”.

Se o rei é ungido por Deus e se não existe dúvida sobre a existência de que as relações humanas são um produto de ancestrais míticos, que as criaram e engendraram os “costumes” com os quais vivemos, então a obediência não é devida à pessoa, mas ao papel que as pessoas desempenham, o qual tem uma chancela como divina ou legal.

O poder tem sempre o seu lado arbitrário e opressivo, mas a dominação é fundada em normas e gestos originários de narrativas sagradas ou de códigos ancestrais ou de leis naturais, fundadores da ordem humana. É assim que ela escapa da história e passa a impressão de eternidade.

O poder depende da força. A dominação requer acordos. “Tomar o poder” como querem os imbecis é uma banalidade; atingir – entretanto – um sistema razoável de dominação requer senso de justiça entre o mandante e o obediente. Pois entre eles existem normas e rituais que legitimam suas diferenças e podem revertê-las.

Tudo isso nos leva além de Weber para Arnold Van Gennep – o revelador da estrutura elementar dos rituais, essa base comportamental da legitimidade. Ele diz:

1. Os estágios críticos do ciclo de vida que começa com o nascimento, passa pela puberdade, casamento, paternidade, e, finalmente, chega com a morte; ainda que estejam relacionadas a eventos fisiológicos, são definidos socialmente;

2. A entrada e a saída desses estágios críticos são sempre marcadas por rituais e cerimônias não apenas nas “sociedades primitivas”, mas também na civilização cristã e nas civilizações da antiguidade;

3. Esses “ritos de passagem” incluem sempre três fases: separação (que remove os sujeitos do seu campo social rotineiro), transição ou margem e, finalmente, incorporação num novo campo e papel social.

Nas democracias, essas passagens ocorrem de tempos em temos naquilo que chamamos de eleição – esse grandioso processo cerimonial no qual legisladores e executivos são substituídos numa ampla competição determinada pelo “voto”. Por uma promessa representativa de lealdade e confiança.

Nesse sentido, a eleição é um ritual cujo objetivo explícito é a renovação – essa marca registrada do viés democrático. Ela é também uma ocasião na qual a sociedade pode reclamar aquilo a que aspira e ver-se a si mesma como um feixe de opiniões divergentes. Pode também servir como correção para governantes que traíram a confiança dos seus eleitores.

Foi exatamente a isso que assistimos tranquilamente neste último domingo e que iremos assistir novamente no “segundo turno” quando será finalizada a associação de um candidato (que passa) ao cargo de presidente da República (que permanece).

Temos hoje uma conjuntura eleitoral marcada por divergências somadas a ressentimentos que impedem agir com a tal racionalidade que o campo do político dizia possuir na sua definição moderna. Que Deus, esse representante de tudo o que tentamos enxergar, nos ajude e nos livre da violência, da extorsão e da impostura em nome da democracia.”

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