Por Carlos Sena (*)
Quase todo dia a gente se reunia para jogar
conversa fora. Enquanto muitos não jogam nada fora, nem mesmo conversa, a gente
fazia isso sempre. Nossa infância foi assim – meio cheia de simplicidade, mas
com atividades lúdicas que até hoje nos rendem lucros. Quando a gente não se
encontrava na praça, ou no campo de futebol, era na quadra do Colégio São
Geraldo. Quando dava pra rolar uma pelada, tudo bem. Quando não, a gente se
danava no mundo. Nada de extraordinário, mas pra nós era como se fosse.
Lembro-me de um dia em que a gente foi ao Colégio das Freiras “roubar” coco
verde. Nem nos demos conta do horário, pois éramos crianças – misto de
crionças, e não tínhamos hábito de ficar grudado em relógio como hoje. Até
porque relógio era coisa de rico e nós, mesmo meio que metidinhos a classe
média, não andávamos com relógio. Mas, pra que relógio? A gente era meio
“jumento”: olhávamos para o sol e dizíamos a hora. Dificilmente a gente errava.
Mas, na história dos cocos no Colégio, de repente eis que a gente se encontra
sobre o muro do cemitério! Em Bom Conselho, os padres e as freiras não se
enterram no cemitério geral não. Talvez porque se achem melhores do que nós, ou
não sendo assim, sentem-se mais próximos de Deus para ter essa regalia. Dentro
do cemitério, exatamente onde ficam as catacumbas, eis que estavam os pés de
coco, cheinhos, "greiando" da nossa cara. Sobre o muro havia um cacho
deles quase derrubando o mudo que sobre ele ficava se apoiando. Tentamos com
uma vara, como quem cutuca o cão com vara curta, mas nada. Um de nós subiu ao
muro e, quando a gente puxou o cacho ele, de tão pesado, caiu com tudo. Mas,
pro nosso desespero, a maioria caiu dentro do cemitério. Pensam que a gente não
foi buscá-los? Pulamos o muro! Pra nosso azar, a maioria dos bobônicas caiu
dentro de catacumbas abertas. E agora? Já passava da meia noite, mas nem nos
demos contra disto. Eu mesmo fui buscar uns cocos e com eles vieram ossos de
freiras que estavam jogados na tumba aberta. Separei o joio do trigo e levamos
pro outro lado do mudo. Fomos beber água de coco no “campinho” que hoje é um
centro esportivo. La tomamos tanta água de coco que ainda hoje não sou muito fã
delas por conta disso.
Quando a gente se deu por conta
da hora, já houvera dado uma da madrugada. Não houve chilique, nem choro, nem
vela. Lamentamos, inclusive que naquela noite as freiras pentelhas (sempre tem
uma) abrisse uma janelinha e acendesse a luz pra nos botar pra correr, mas não
aconteceu. Sequer as freiras que a gente mexeu com seus ossinhos se importou
conosco. Foi, de certa maneira, uma frustração, porque a gente fazia isso muito
mais pela adrenalina de ver a freira gritar lá de cima e a gente sair correndo
livres e soltos, pela relva. O lado bom dessa noite é que no dia seguinte
nenhuma freira bateu nossas portas como de costume. Elas faziam isso porque
sabiam que nossos pais nos castigavam no coro. O pau cantava pra valer,
injustamente. Hoje entendo que foi injusto diante do que vemos fazerem os
garotos que, diferente de nós, não tem infância livre, ingênua e feliz. Nós
éramos de uma geração tão sem maldade que, certa vez, a gente se reuniu na casa
de Adnísio Padilha. Ele, sempre espirituoso, olhou pra Tadeu e disse: “Tadeu,
vai olhar se eu estou lá na ponte”. Tadeu foi e a gente ficou rindo dele,
coitado. Ele volta e ainda respondeu pra Adnísio: “O Sr não tava lá não”...
Viram! Qual a maldade de Tadeu? Nenhuma, mas a educação recebida dos pais para
obedecer sempre aos mais velhos. Só que ele exagerou no chá, digamos assim e
não levou na galhofa, pois Adnísio era de uma presença de espírito e de um
humor impagáveis.
Assim, sempre que a gente se
reunia nalgum lugar, coisa boa não ia sair. Certamente uma peraltice vinha a
caminho, mas, sem maldade consentida como a gente vê tanto nos dias de tanta
modernidade. Modernidade? Eu falei isso? Ah, tá. Desculpem, mas eu prefiro a
criação démodé que tive ou que tivemos. De todos os nossos amigos de infância
todos deram, digamos assim, “pra gente” através dos estudos. Hoje, passado
algum tempo, ninguém fuma maconha, nem rouba, nem é malandro, nem desrespeita
os mais velhos. Todos são trabalhadores e a maioria é graduada nas suas
profissões acadêmicas. Soube outro dia que andaram cheirando. Quase tive uma
síncope. Mas, em tempo, me tranquilizaram dizendo que cheiravam xibiu, digo,
xoxota das meninas, mesmo hoje depois de tanto tempo, não necessariamente nessa
mesma ordem.
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(*) Publicado no Recanto de
Letras em 02/11/2012.
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