Por Carlos Sena
O telefone toca insistentemente. Era Leonildo querendo a todo custo me falar acerca de um hóspede seu que decidira passar o final de semana no Recife, em sua casa. O grande detalhe é que o hóspede – tranqüilo, de boas maneiras, fino, como se diz por aqui, queria conhecer uma boate famosa, coisa de primeiro mundo, como dizem. Metrópole é o nome dela, mas Leonildo me dissera nunca ser chegado a boates mesmo nos seus tempos de juventude. Perguntou a Leonora, sua esposa, mas ela não achou nada demais, apenas que não iria. Leonildo e seu hóspede tinham uma amizade dos tempos de criança no interior pernambucano. Um nutria pelo outro amizade sincera e o fundamento dessa amizade era a forma como ambos viam a vida, dentro do mínimo possível de preconceito. Ficou então acertado que Leonildo levaria seu amigo a Metrópole. Fuçaram na internet para ver a programação, os preços e tudo mais. No site ele viu claramente que se tratava de um ambiente GLS, mais GL do que S. Leonora não achou nada demais, até porque, segundo ela, cada um tem que se garantir em qualquer local.
Meia noite. Lá estavam Leonildo e seu amigo em plena Metrópole – espaço glamouroso, decoração adequada, “gente saindo pelo ladrão” espalhava-se pelos três andares da boate. Os dois ficaram boquiabertos com a estrutura da boate, pois além de três andares com musica, barzinho, espaço para “ficar mais a vontade”, eis que no térreo descortina-se uma piscina. Junto dela um bar, mesinhas bem dispostas, homens, mulheres, gays, lésbicas e simpatizantes. Gente com quatro, cinco ou mais brincos, tatuagens enormes no corpo, homens sarados sem camisas mostrando seu ego mal resolvido, “bichos grilos”, cabelos vermelhos, enfim, excentricidade por toda parte. Fizeram o reconhecimento do “terreno” e foram curtir a noite. No térreo, predominava o ritmo “bate estaca”; no primeiro andar, outra modalidade de dancing mais branda do que o bate estaca. No terceiro andar... No terceiro andar, parecia um inferno de diversidade. Homem se beijando com homem, homem com mulher, mulher com mulher, travestis, etc., davam o tom daquele espaço. A música que rolava era bem ao gosto MPB tipo Ivete Sangalo, axé música, etc., entremeada por dancing. Gente de todas as idades delirava cantando os hits da moda, inclusive em inglês. Se a grande maioria falava inglês não sabemos, mas cantavam tipo papagaio o tempo todo. O piso em madeira dava a impressão de que poderia cair e foi então que Leonildo saiu daquele espaço, mas seu amigo ficou. Na verdade perderam-se um do outro, mas Leonildo sabia que ali dentro certamente reencontrava seu hóspede, o que de fato aconteceu. No dancing do meio, eis que o hospede estava aos beijos com outro rapaz. Num primeiro momento, Leonildo pensou que fosse a vista confusa em função das luzes, dos raios laser e da confusão de gente que se acotovelava cantando, dançando e berrando. Chegando mais perto confirmou que seu amigo estava mesmo enfiado num beijo de língua com um rapaz. Recuperado da surpresa, Leonildo saiu de fininho para deixar seu amigo a vontade. No térreo, lugar mais “louco” da boate, Leonildo ficou meio sem jeito, mas fazendo de conta que estava se balançando. Em determinado momento Leonildo sentiu que alguém pegava na sua mão. Quando ele se virou pra olhar quem era, foi surpreendido com um tremendo beijo de língua dado por um dos rapazes que estavam em sua redondeza. Depois do beijo Leonildo ficou meio zonzo, pois embora (segundo ele) não tenha correspondido ao beijo, foi um beijo de homem, coisa que jamais imaginara acontecer. Mas antes que essa confusão em sua cabeça diminuísse, vem uma mulher linda e taca-lhe outro beijo. Desta vez ele se soltou, pois a mulher era linda e sensual. Depois dessas emoções, decidiu sair um pouco para a área da piscina onde todos iam fumar, ou descansar um pouco os ouvidos cansados da barulheira, da pauleira do som lá de dentro. Pediu um refrigerante e ficou observando o movimento quando surge seu amigo e hospede. Sentaram-se juntos e começaram a conversar sobre aquela noite tão surpreendente. Eis que o locutor anuncia que “O SHOW” vai começar. Convida então a pessoa que iria comandar o espetáculo. Nada mais nada menos do que a mulher que beijou Leonildo e que ele gostou, não fosse o seguinte detalhe: tratava-se de um travesti – daqueles que dá trabalho pra você descobrir se é homem ou mulher. Leonildo foi ao chão. Cabisbaixo, chamou a atenção do seu amigo que logo procurou saber o que se passava. Por outro lado, seu hóspede não sabia que seu amigo sabia, ou seja, o hospede era gay assumido, embora discreto. Aquele clima meio dúbio começou incomodar aos dois. Um porque queria abrir o jogo pra o amigo sobre sua sexualidade; o outro porque não sabia como dizer que houvera beijado dois homens, mesmo sem ser gay. Nessa hora se aproxima dos dois uma terceira pessoa. Era o carinha com quem o hóspede estava se beijando. Na verdade já era o namorado, apenas Leonildo não sabia de toda a verdade do amigo. De fato, o hospede não agiu corretamente com Leonildo, mas ele pensou que “quem está na chuva é pra se molhar”. Seu hóspede saiu com o namorado para um dos pavimentos e Leonildo ficou no pavilhão do meio, considerando que lá a musica era light e havia espaços em poltronas para quem quisesse se isolar um pouco. Sentou-se na poltrona e começou a se questionar acerca dos beijos dados, embora o primeiro tenha sido um pouco como beijo de novela, segundo ele. Ficou ali sentadinho até que seu amigo, acompanhado do seu namorado, chamou pra ir embora, pois já iam dar cinco horas da manhã. Saíram os três e foram pegar um taxi, mas seu hospede disse que ia dormir com o namorado no motel e que mais tarde chegaria a casa. Leonildo sai sozinho com todos os seus demônios lhe cutucando. Na verdade o que Leonildo sentia era que sua sexualidade tinha sido posta a prova. – Será que sou gay? E se eu “for” como minha mulher e meus filhos vão entender uma coisa destas? Ao chegar a casa, sua esposa ainda dormia. Ele foi pro quarto de hóspede pra ver se encontrava uma saída para aqueles conflitos. No dia seguinte, me liga e conta toda essa proeza. Foi além: pediu-me pra ajudá-lo. Apenas eu lhe disse que há uma diferença entre teoria e prática. Leonildo se achava o rei da “cocada preta” em termos de aceitar a todos como eles são. Este talvez tenha sido o motivo pelo qual seu amigo o convidou para ir à boate, pois certamente tinha consciência de que aquele espaço era predominantemente Gay.
Leonildo chegou a fazer algumas sessões de psicanálise, mas logo entendeu que não era gay; descobriu que um beijo gay não torna ninguém gay. Afinal, boca é boca, seja ela de quem for. O que muda é o contorno: mulher não tem barba nem bigode, homem tem. Mas por dentro, toda boca é boca. A emoção que advier disto é que são outros quinhentos. Outro dia, convidei Leonildo pra ir me mostrar a Metrópole, mas ele não quis nem conversar sobre o assunto. De repente, não é fácil dizer que não tem preconceito. Melhor que não dizer é agir neste sentido. Claro que a preferência de cada pessoa deve ser respeitada, mas por um beijo às avessas ficar macambúzio nos parece demais.
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(*) Publicado no Recanto das Letras em 17/01/2011
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