“O Brasil na casinha do cachorro
Por Fernão Lara Mesquita
Em nenhum campo mais que no da
política “o meio é a mensagem”. É o sistema que faz as pessoas, e não o
contrário. Há sempre um elemento de “o ovo ou a galinha” nesse raciocínio, mas
o fato é que, como McLuhan demonstrou em sua obra, a alteração do meio, ou
seja, da tecnologia institucional em uso, é muito mais determinante para
definir ou mudar os resultados (as mudanças sociais e comportamentais
necessárias) do que o conteúdo que transita por esse meio (o discurso do bem ou
mesmo a boa intenção que, porventura, tenha nascido sincera).
O caso brasileiro é um exemplo
eloquente. Seja quem for que ingresse na política ou no serviço público do
jeito que o “sistema” opera hoje, acaba por se corromper. A qualidade da
matéria-prima inserida no “processador” pode alterar a velocidade da corrosão,
mas ela é incoercível. Ninguém mergulha nesse mar de privilégios e impunidade e
sai incólume. O bom comportamento num ambiente assim acaba assumindo o ar de
uma denúncia. Ou o recém-chegado se corrompe ou acaba sendo expelido como uma
ameaça para os demais. Já começa, aliás, por se acumpliciar, pois para entrar
na política é obrigatório “acertar-se” com o dono de algum dos partidos, que já
vivem de dinheiro do governo e da distribuição de pedaços do Estado, enquanto
no serviço público impera o espírito do “concurseiro”, a quem não interessa
quando nem onde, tudo o que conta é pôr um pé dentro do privilégio...
Daí para a frente se cria uma
cadeia causal. O de entrada é um sistema de seleção negativa. O de permanência,
um filtro mais fino ainda. E como o “negócio” passa a ser a criação de
dificuldades para proporcionar a venda de facilidades, essa filtragem negativa
se estende para a sociedade como um todo. Quem insistir no caminho da lei morrerá
afogado na burocracia, pois para seguir adiante na velocidade que o mundo
requer é preciso subornar.
Em Estados tanto quanto em
empresas, é o sistema de governança muito mais que o esforço despendido por
cada indivíduo solitariamente que define o resultado do trabalho. É uma ilusão
de noiva achar que algo vai mudar mudando-se apenas as pessoas na operação do
mesmo sistema político.
O sistema político faz a riqueza
ou a pobreza das nações. É uma falácia o argumento de que o Brasil jamais
poderia ter um sistema civilizado. Os suíços e os americanos, entre outros, não
nasceram como são hoje. Eles ficaram como são hoje porque por uma conjunção
específica de acontecimentos históricos, cada um em seu momento, adotaram um
sistema que resulta num filtro de seleção positiva. Não têm o sistema político
que têm porque eram mais educados, mais ricos ou mais virtuosos que os demais
no ponto de partida. É o contrário, eles ficaram mais ricos e educados porque
instituíram um filtro de seleção positiva. A matéria-prima é a mesma aqui e lá,
mais inclinada para o vício que para a virtude. Apenas lá, ao contrário daqui,
o Estado trabalha para desimpedir os caminhos para a virtude e atravancar os
que conduzem ao vício. Tanto que o melhor do que hoje “assinam” como produção
própria foi feito por estrangeiros fugitivos de sistemas nos quais só o vício
consegue passagem.
A questão da segurança jurídica é
crítica. Dada a propensão preferencial da espécie pelo vício, quanto mais longe
se colocar a baliza das decisões do arbítrio e do pensamento abstrato, pai do
arbítrio, melhor tende a ser o resultado. Existe uma fortíssima coincidência
entre a riqueza das nações e o seu sistema jurídico. É sob o sistema de “common
law”, que foi comum a toda a Europa, Portugal inclusive, até os primeiros
passos das monarquias absolutistas no final do século 13, que vive a maioria
das nações mais ricas e livres do mundo. Nesse sistema é o precedente que
define a sentença, e não o juiz. É o júri, não o meritíssimo, que define se o
caso presente é mesmo idêntico ao anterior. Se a conclusão for que sim, a
sentença será automaticamente a mesma que foi dada para aquele. O juiz está lá
mais para conferir os ritos do processo do que para qualquer outra coisa, mesmo
porque o sentido da justiça terrena é reduzir as oportunidades de corrupção, e
não redesenhar a humanidade. O problema é que a corrupção se torna irresistível
justamente quando é a liberdade do indivíduo ou até a sua vida que está em
jogo, como no caso das decisões judiciais. Os fatos são o que são e podem ser
concretamente aferidos na sua sequência e na sua relação causal, enquanto a
vontade humana, livre para voar por definição, é sempre uma expressão do
arbítrio, a própria negação da impessoalidade que torna previsível, ou seja,
segura, a justiça que o investimento em desenvolvimento requer.
Assim também os sistemas
políticos. A lei só será “amigável para o usuário” se for feita por ele ou, no
mínimo, para ele. A democracia foi inventada para isso. Neste mundo de
multidões, porém, ela só pode ser “representativa”. E para ser mesmo
“representativa” é preciso que o representante esteja permanentemente sujeito à
cobrança do representado e esta, para ser efetiva, tem de ser feita “à mão
armada”. Ou seja, a sobrevivência do mandato do cobrado (assim como a do
emprego público) tem de estar permanentemente em jogo.
Qualquer brasileiro, por menos
educado que seja, sabe que se contratar um empregado amanhã garantindo-lhe que
daí por diante será indemissível, faça o que fizer, e ele próprio definirá seu salário
independentemente do serviço que entregar, em seis meses estará na casinha do
cachorro e o tal empregado, deitado em sua cama.
O Brasil está na casinha do
cachorro. Para sair terá de ter a mão armada para ganhar controle efetivo sobre
o desenvolvimento futuro das carreiras políticas e do funcionalismo. E só tem
esse controle quem tem o poder de demitir. Só o recall, o referendo e as leis
de iniciativa popular dão esse poder ao povo de forma irrecorrível. E só com
eleições distritais puras essa arma passa a atirar apenas e tão somente se for
acionada de modo responsável, transparente e com garantia de atingir somente o
alvo visado.
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AGD comenta
Dias atrás eu transcrevi aqui um
texto do Fernão Lara Mesquita, que falava sobre um sistema distrital de votos (aqui).
Hoje, transcrevo o autor, que trata do tema de forma ampliada, mostrando quanto
é necessário mudar nosso sistema político para o Brasil entrar num rumo
civilizatório.
Hoje também é Dia de Natal e
resolvi dar férias à AGD por estes dias de festas e pedidos de presentes. Ela
voltará no próximo ano (ou em edição extraordinária) com o mesmo espírito de
sempre: Ser mais um meio de comunicação para nossa cidade de Bom Conselho.
E aqui nem comentarei o texto do
Fernão, e sim só usarei este espaço para desejar a todos um feliz Natal e um
próspero Ano Novo.
Um grande presente para nosso
país seria a possibilidade de mudar nosso sistema político, para que ele não
viva mais na “casinha de cachorro”, sem ofensa aos cachorros.
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