Por Rosane Coelho
Era exatamente meia-noite, de um domingo pra segunda-feira, quando segurei na cabeceira da cama pra virar pro outro lado e a bolsa d’água estourou. Telefonamos pra Dra. Patrícia e ela mandou que fôssemos pra Casa de Saúde Santa Rosa – um lugar horroroso, na subida do Morro da Santa, que a gente só encarou porque nessas horas não se discute ordem de médico. No caminho, olhei pro morro e vi a Nossa Senhora toda iluminada; afinal, era maio, mês de Maria. Dentro do meu coração agnóstico pedi a ela que nos protegesse. Sabia que as próximas horas seriam dolorosas. Quando chegamos ao hospital a médica nos aguardava na portaria. O líquido da bolsa rompida escorria pelas minhas pernas abaixo sem a menor cerimônia, sem o menor pudor...
Preenchidas as formalidades burocráticas fomos pro quarto. Quando as contrações apertaram e ficaram mais freqüentes, seu pai desapareceu. Indignada, pedi à enfermeira que o caçasse (vivo, de preferência....). A Dra. Patrícia tinha ido providenciar sala de parto, e outras coisas mais... Quando ela voltou, me examinou e disse que ainda levaria umas duas horas pra você nascer. Saiu novamente e me deixou com seu pai. Uns quinze minutos depois, aflita, despachei seu pai em busca da médica: você estava nascendo. Ela chegou com aquela carinha de calma-você-está-nervosa-ainda-não-está-na-hora. Eu insisti e ela fez outro toque. Arregalou os olhos e anunciou: a cabeça já está aparecendo! Saiu, tentando disfarçar a pressa que o momento requeria, seguida pelo valente do seu pai. E eu fiquei ali, sem poder fechar as pernas, com a sua cabeça entalada.
Rapidamente a Dra. Patrícia voltou empurrando uma maca pra me levar pra sala de parto. Sim, quem disse que naquela espelunca tinha mais alguém que pudesse servir de maqueiro? Ah! O pediatra também não havia chegado.
Depois de desfilar naquela maca guiada, dirigida, pilotada, ou sei lá o quê pela própria médica, por absoluta falta de outra pessoa que o fizesse, chegamos, enfim, à entrada da sala de parto. Fiquei do lado de fora esperando que ela vestisse uma roupa de astronauta que eu até acreditei, dadas as condições da má ternidade, que fosse esterilizada. Roupa vestida (era cor-de-rosa), mais uma empurradinha até a sala, onde ela me ajudou a passar da maca praquela cama estranha, em que a gente fica com as pernas pro alto e abertas, apoiadas num troço esquisito, e faz, ou tenta fazer, tudo o que o médico manda. Depois de instalada na, digamos, mesa de parto, eis que surge outro personagem, dessa vez de roupa de astronauta azul. Aí eu pensei (sim, porque eu ainda conseguia pensar): até que enfim chegou o médico assistente! Doce ilusão: era seu pai que, diga-se de passagem, comportou-se muito bem: nem desmaiou! Também, se caísse não teria quem o levantasse! Eram esses os personagens da cena do seu nascimento: eu, a obstetra e seu pai.
Aí começou a estória: respira, faz força, respira, faz força, mais força, ajuda, tá quase, ajuda, mais força, respira , força, tá quase, só mais um pouquinho, força, PRONTO! NASCEU! E a médica pegava sua cabeça, que escorregava e ela pegava no ombro que escorregava também e pegava na bunda, até conseguir te sustentar pelos pés. Aí, mais uma emoção: Olha aqui: uma, duas, três voltas de cordão no pescoço... Por isso que estava demorando pra nascer... É um() menin(). E eu, conformadíssima: é, eu já sabia que dessa vez seria um menino. Que bom, né? Assim fica um casal... E seu pai indignado: é umA meninA! Caramba!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Que alegria!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Aí ele falou: e vai se chamar Anna Clara. E eu: só se for Annaclara tudo junto. Ele: É, tudo junto, mas não é só Annaclara, não, é Annaclara Clareanna, com dois enes também! Pensei comigo: isso a gente negocia depois...
Mas, cadê a minha filha? Eu nem a vi!!!!!! Eu quero ver a minha filha! Calma, o pediatra está fazendo os exames iniciais. Onde? Cadê ele? Ele tá examinando ela lá fora, na sala dos bebês. Depois de passar pelo controle de qualidade e ser aprovada, trouxeram você pra eu ver, mas só um pouquinho... Daí te carregaram pro berçário enquanto eu voltava pro quarto e tomava o melhor banho – e olha que era frio – da minha vida.
Nisso já tinha amanhecido e eu esperava ansiosa o momento de te pegar, quando a enfermeira entrou com uma trouxinha gritante, morta de fome. E você mamou, ou tentou... Mas a gente acabou se entendendo e você, definitivamente, só calava a boca quando estava mamando, ou tentando...
Seu pai saiu pra resolver algumas coisas e eu fiquei ali com aquele embrulhinho esperneante, gritante e faminto. Misturei meu choro com o seu. Embalei você em parceria com Cazuza: “amor da minha vida, daqui até a eternidade, nossos destinos foram traçados na maternidade”.
Hoje, passados dezoito anos, venho te dizer que não foi na maternidade que nossos destinos foram traçados e entrançados... Isso é coisa encantada; dessas que sempre existiram, que não têm começo... Você acredita mesmo que um sentimento que dure até a eternidade possa ser limitado pela mesquinharia de um começo? Não! O eterno é o sempre, é o sem início e sem fim... Sem pontas. Circular...
Ah! E o nome eu não tive nem chance de negociar. Quando seu pai voltou, trouxe uma xerox ampliada do seu Registro de Nascimento, onde se lia que havia nascido ANNACLARA CLAREANNA COELHO DE OLIVEIRA QUINTANILHA VELASCO. Naquele momento, a única coisa que me ocorreu foi: quando aprender a escrever o nome já vai estar alfabetizada... Logo, logo, porém, você virou Nana e eu concluí que seu nome era de princesa.
Feliz aniversário, Majestade!
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Publicado no Recanto das Letras em 05/11/2005.
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