“Notas de um
velho marinheiro
Por Fernando
Gabeira
Este é o meu
último artigo do período de transição. No ano que vem a coisa começa. É hora de
a onça beber água, a cobra fumar, o tatu sair da toca. Termina uma longa
experiência em que predominaram ideias de esquerda, começa uma experiência
liberal conservadora, de certa forma inédita, pois sempre se definiu assim, sem
subterfúgios.
Um dos truísmos
mais presentes na política é afirmar que nem sempre as coisas acontecem como
planejado por seus atores. Em alguns casos podem até se transformar no oposto
do desejado.
O projeto
político iniciado em princípio de 2003, com a vitória de Lula, pretendia levar
o Brasil a um novo patamar de liberdade e justiça social. Terminou em crise
econômica, milhões de desempregados e alguns atores, o principal incluído,
atrás das grades.
Durante muitos
anos estudei o marxismo e constatei, na prática, a inadequação de suas teses.
Talvez por temperamento, desde a juventude sempre tive um pé atrás com a ideia
de que a História é regida por leis inflexíveis e obedece a um script inevitável.
Quando ouvia as
pessoas repetirem o slogan cubano “até a vitória sempre”, costumava responder:
sempre que possível.
Era uma abertura
para o inesperado, no fundo uma rebeldia contra um mundo pré-desenhado, um
cemitério da criatividade humana. Minhas críticas e revisões das ideias de
esquerda me valeram algumas antipatias. Nada de grave. Foi possível continuar
pensando e escrevendo num clima quase razoável.
Possivelmente,
em alguns momentos, vou desagradar aos liberais conservadores. Mas o que fazer?
A alternativa seria concordar com uma euforia que a longa experiência não
autoriza.
De modo geral,
faço perguntas, não acusações. Uma das perguntas-chave que faço aos
conservadores que chegam ao poder com a esperança de propagar sua fé cristã é:
não estão chegando tarde demais a um mundo secularizado, onde a tradição e a
cultura não podem ser apoiadas numa fé transcendental compartilhada?
Uma das
referências que tenho é a passagem de Margaret Thatcher pelo governo inglês.
Além de sua firme decisão de enfrentar corporativismos, ela manifestou muita
simpatia pela moral vitoriana, tempos mais íntegros e felizes, segundo ela. Ao
deixar o poder, Thatcher deixou também uma Inglaterra bem mais permissiva do
que encontrou.
Aos
conservadores brasileiros, para quem o bolo dos costumes desandou, deverá ficar
claro que é difícil cozinhá-lo de novo, restando apenas cuidar do que existe,
olhando para o futuro. Dito assim, parece complicado. Mas, na prática, é o que
está acontecendo. A ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, parece ter
adotado esse caminho ao afirmar que a união civil gay é um direito adquirido e
não vai questioná-la.
Depois de passar
muitos anos criticando a miopia marxista diante das questões ambientais, terei
a irônica tarefa de demonstrar aos conservadores que a preservação é uma ideia
deles que foi introduzida de contrabando no marxismo. Karl Marx sempre
partilhou com alguns pensadores burgueses a ideia de um progresso infinito, sem
limites objetivos. Se saímos do árido campo das ideias e vamos de novo à
prática, basta observar a catástrofe ambiental que foi o socialismo no Leste
Europeu, a degradação da atmosfera nas cidades chinesas.
O PT em 2002
ainda acreditava, como os partidos comunistas da esfera soviética, que o
principal problema era crescer, dar empregos, melhorar o padrão de vida dos
trabalhadores. Estava aí, ainda que incipiente, a raiz das nossas principais
divergências.
Compreendo que
forças emergentes tenham uma linguagem de sonho, que no fundo almejem a
felicidade de seus governados. Mas a História tem mostrado, exceto pelo
idealismo do rei do Butão, que dificilmente a felicidade se conquista pela ação
de governos.
Tudo o que se
pode fazer é minorar suas dificuldades, ajudá-los a conviver, como diz o poema
de Yeats, com a desolação da realidade.
Quando jovem de
esquerda, alguns me irritavam por sua dose de realismo: Raymond Aron, Isaiah
Berlin, George Steiner. Eles despiam a revolução de seus figurinos românticos e
me deixavam só e desesperançado.
Neste momento em
que o Brasil se prepara para viver uma experiência em que a religião tem grande
peso, é necessário em primeiro lugar reconhecer a importância dos cristãos em
nossa vida e cultura. Mas, ao mesmo tempo, questionar suas certezas políticas,
como fazia com os slogans marxistas.
De novo um exemplo
para atenuar a aridez. Por que mudar a Embaixada do Brasil em Israel para
Jerusalém? O quase consenso internacional reconhece que ainda é uma cidade
dividida.
Não foram
grandes formulações de política externa que levaram Bolsonaro a essa saída. Há
uma pressão evangélica, natural, válida, mas inadequada para comandar uma
decisão nacional nesse campo. Para os evangélicos americanos e brasileiros, a
extrema direita em Israel tem grande importância.
Os evangélicos
não leem a Bíblia apenas como um documento sobre o passado. Confiam também em
suas profecias, no seu roteiro para o futuro. E essas profecias dizem que uma
das condições para a volta de Cristo é a recuperação pelos judeus da Terra
Sagrada.
Não se trata de
afirmar que isso seja um delírio, mesmo porque não tenho preconceitos contra
delírios. Muitas de nossas políticas são um delírio. No entanto, quando se
trata de política externa, é necessário, pelo menos, um delírio consensual.
A ideia de
conformar o mundo à nossa fé cristã é de natureza diferente da criação de
internacionais socialistas, Ursais e o escambau. Mas pode sofrer o mesmo
destino melancólico das religiões laicas num mundo - até certo ponto,
irreversivelmente - desencantado.
De qualquer
forma, a aspereza do ano que vem vai nos levar a preocupações mais concretas do
que as do período transitório, fluido por definição.”
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AGD
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