“De quatro em quatro o STF enche
a pança
Por José Nêumanne
Tentando justificar o
injustificável reajuste de seus subsídios de R$ 33 mil para R$ 39 mil, o
Supremo Tribunal Federal (STF) usou como pretexto o fato de seus membros não
terem recebido aumento algum nos últimos quatro anos. Nenhuma evidência demoveu
seus membros da premência de suas necessidades básicas, que teriam deixado de
ser atendidas pela defasagem denunciada. Os vencimentos reajustados agravam a
situação precária das contas públicas, que já assombram o distinto pagante com
o fantasma de uma despesa em cascata de, no mínimo, R$ 4 bilhões até, no
máximo, R$ 6 bilhões. Nem a obviedade de que a proximidade de inadimplência na
Previdência e em outros setores do Estado, que pode levar à incapacidade de
honrar os compromissos cada vez mais gravosos do Tesouro Nacional, nos enche de
pavor neste momento em que 12 milhões de brasileiros estão desempregados. Nem a
constatação de que quem tem o privilégio de um emprego seguro na economia real
não sabe o que é um aumento desde o início da crise, em 2014.
Dourando a pílula do reajuste, o
relator da ação de inconstitucionalidade (Adin) que contesta o privilégio do
auxílio-moradia de juízes e procuradores no STF, ministro Luiz Fux, deu uma
contrapartida duplamente cínica, ao proibi-lo autocraticamente, mas sem
declarar que é inconstitucional. Com isso deu aos seus principais defensores no
plenário da cúpula do Judiciário – o presidente Dias Toffoli e o ex-presidente
Ricardo Lewandowski – o pretexto ao qual se agarraram para ludibriar os
pagantes, por eles tratados como idiotas: o fim das despesas com o privilégio
compensaria o rombo necessário para lhes atender os rogos.
A desfaçatez dupla foi construída
em cima de falácias aritméticas. Por mais que seja absurdo, o auxílio-moradia
não chega a representar um quarto do dinheiro necessário para cobrir o reajuste
exigido em absurda chantagem de julgadores contra julgados (deputados,
senadores e o presidente da República). A Câmara aprovou, o Senado também e,
sem dar a mínima para o apelo de seu sucessor, Bolsonaro, eleito por mais de 57
milhões de votos em outubro, Temer sancionou a lei absurda. E o pior é que essa
não foi a única mentira acrescida à chantagem. Toffoli, Lewandowski e outros
pedintes garantiram que economias no orçamento na TV Justiça cobririam com
folga o reajuste folgazão. Dois coelhos foram abatidos a golpes de uma só
cajadada: orçamento menor na TV poderá bancar menos transmissões ao vivo do
vexame que são as sessões de plenário transmitidas sempre no meio das semanas.
E o argumento segundo o qual o custo orçado do Poder não aumentaria é outra
patranha.
Quem duvidar pode consultar aqui
mesmo, no Portal do Estadão, a notícia que serviu de manchete de primeira
página à edição de domingo 2 de dezembro do jornal: Judiciário quadruplica
gasto com pessoal em duas décadas. É de bom tom esclarecer ao preclaro leitor
que essa conta – reproduzida na linha fina da reportagem publicada na página
A4, de abertura da Editoria de Política, Em duas décadas. Na comparação com
Executivo e Legislativo, Poder foi o que mais expandiu os gastos com a folha de
pagamento de 1995 a 2017: um incremento de 297% – não inclui o impacto do
reajuste cruel. Desta vez nem é preciso citar o cinismo dos “supremos”. Basta a
boutade do presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), Fernando Mendes,
segundo quem “Justiça não pode ser vista como custo”. A questão é se esse
pretexto deve provocar risos ou urros de dor, superando qualquer piada que
pudesse ter sido dita no STF.
Quando Lewandowski teve o topete
de chamar de “modestíssimos” seus vencimentos e seu colega Dias Toffoli,
presidente do egrégio tribunal, aventou a possibilidade de os 11 andarem com
“pires na mão”, o repórter André Shalders, da BBC Brasil em São Paulo, publicou
em seu site uma comparação entre os ministros brasileiros e os europeus.
Segundo ele, “um estudo de 2016 da Comissão Europeia para a Eficiência da
Justiça (Cepej, na sigla em francês) mostra que, em 2014, um juiz da Suprema
Corte dos países do bloco ganhava 4,5 vezes mais que a renda média de um
trabalhador europeu. No Brasil, a realidade do salário do STF é ainda mais
distante da média da população: o salário-base de R$ 33,7 mil do Supremo
Tribunal Federal corresponde a 16 vezes a renda média de um trabalhador do País
(que era de R$ 2.154 no fim de 2017)”. Em seguida, comparou: “Em 2014, um magistrado
da Suprema Corte de um país da União Europeia recebia, em média, €$ 65,7 mil
por ano. Ao câmbio atual, o valor equivaleria a cerca de R$ 287 mil – R$ 23,9
mil mensais”. Ou seja, dois terços dos atuais proventos dos brasileiros, antes
de serem reajustados.
Outro texto da BBC Brasil em São
Paulo, da lavra de Cláudia Wallins, tem sido citado a respeito dessa querela.
Ela o começou com uma sentença indignada de Göran Lambertz, da Suprema Corte da
Súécia: “Não almoço à custa do dinheiro do contribuinte”.
Segundo Wallins, “a pergunta que
inflamou a reação do magistrado era se, assim como ocorre no Brasil, os juízes
da instância máxima do Poder Judiciário sueco têm direito a carro oficial com
motorista e benefícios extra-salariais como auxílio-saúde, auxílio-moradia,
gratificação natalina, verbas de representação, auxílio-funeral, auxílio
pré-escolar para cada filho, abonos de permanência e auxílio-alimentação. ‘Não
consigo entender por que um ser humano gostaria de ter tais privilégios. Só vivemos
uma vez e, portanto, penso que a vida deve ser vivida com bons padrões éticos.
Não posso compreender um ser humano que tenta obter privilégios com o dinheiro
público. Luxo pago com o dinheiro do contribuinte é imoral e antiético’”. Que
ministro tem filho em pré-escola?
A sentença do juiz sueco poderia
ser adotada como bordão por algum nobre colega de ofício dele ou mesmo qualquer
servidor público. Deveria, por exemplo, ser adotado pelos membros do Ministério
Público Federal, que têm atuado de forma destemida e competente no combate à
corrupção em várias operações associadas com a Polícia Federal, sendo a Lava
Jato a mais notória delas. No entanto, ao que parece, o bordão do escandinavo
não agrada aos togados do STF nem serve de lema para a procuradora-geral da
República, Raquel Dodge. Ela acaba de representar contra a extinção do
auxílio-moradia para sua categoria, argumentando que o relator Fux não tem
autoridade para tomar decisões do gênero. Se o Supremo não decide sobre
procuradores, quem decidiria, então: o bei de Túnis ou a Santa Sé?
Pegando a iniciativa de dra.
Dodge como gancho, convém lembrar que um Estado de Direito numa República – e
assim o Brasil se propõe ser – segue o sistema da autonomia dos três Poderes,
tal como previsto por Montesquieu e que pode ser definido no popular como “cada
macaco no seu galho”. No Brasil todos os Poderes da República foram afetados
pela corrupção, devassada pelas operações citadas. Membros do Congresso,
Executivo e Justiça se meteram em ilícitos. E não dá para consertar esse
imbróglio dando aos cardeais do Judiciário prerrogativas não previstas na
Constituição sobre os outros dois Poderes. O Judiciário tem de olhar para trás
e fazer justiça. O Legislativo age na política olhando para a frente ao
legislar em nome do povo, de que emana todo o poder. O Executivo cuida do tempo
presente, administrando e cumprindo as leis. Não é lícito nem lúcido tornar a
Justiça palco de disputa política, tal como ocorre. Este é um erro que urge
corrigir.”
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