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sexta-feira, 27 de junho de 2014

Clube não é boteco




 Por Nelson Rodrigues  

 Leio os jornais e observo o seguinte: — uma tendência universal para achar que os campeões do mundo devem aceitar, sim, o próprio leilão. É a fi losofia do toma lá da cá, da oferta maior, do lance mais alto. Se oferecem tanto a Vavá e tanto ao clube, o negócio deve ser fechado brutalmente e com a solidariedade e o estímulo da imprensa, do rádio e da televisão. Do contrário, argumenta a maioria dos meus confrades, seria prejudicar o craque e o clube.

É, como se vê, um raciocínio monstruoso, que coloca o problema em termos estritamente mercenários. Ora, as profissões e as pessoas dependem ou, antes, dependem sobretudo de valores gratuitos. Procurarei esclarecer: — a vergonha de uma senhora honesta. É um bem material, negociável, a vergonha de uma senhora honesta? Não, evidentemente. E, no entanto, por esse valor gratuito, ela estará disposta a morrer e matar. E assim o seu marido e os seus fi lhos. Não ocorreria a ninguém aconselhar a uma mulher casada que aceite uma boa oferta, em dinheiro, do primeiro pilantra. Ela estaria disposta a vender as joias, os talheres, as cadeiras, os lençóis, o diabo a quatro. Menos os seus valores incomerciáveis. Objetará alguém que eu estou misturando alhos com bugalhos. Nem tanto, amigos, nem tanto. Qualquer profissão há de ter um sentido ético 3 que a justifique e valorize. O futebol profissional exige dinheiro, mas não só dinheiro. Ele implica algo mais, ou seja: implica os tais valores gratuitos que conferem a um jogo, a uma pelada uma dimensão especialíssima. Um match representa algo mais que pontapés. Participam da luta dois clubes e todos os seus bens morais, afetivos, líricos, históricos. No Vasco, o mais importante é um valor gratuito: — a tradição.

Nunca um clube espanhol teria a desfaçatez de querer comprar a tradição vascaína. E por quê? Por causa de um puro e simples problema de vergonha. Do mesmo modo, nenhum clube se lembraria de vender um presidente, embora o presidente seja uma figura infinitamente menos essencial que um campeão do mundo. Eis o ponto nevrálgico da questão: — clube não é boteco para vender tudo. Ele possui coisas que não venderia nem por todo o ouro da Terra.

Dirá alguém que um campeão do mundo é um jogador como outro qualquer. Mentira. Por exemplo — o caso de Vavá. O Vasco está vendendo errado Vavá, está vendendo errado o Vavá do ano passado, o pré-Vavá, o Vavá anterior à Taça Jules Rimet. E há um profundo e irredutível abismo entre um e outro Vavás. São duas pessoas que não se conhecem, não se competem, nem se cumprimentam. O Vavá antigo não tinha a autoridade que conquistou, brava e furiosamente, na Suécia. Era desconsiderado pelos companheiros. Agora, não. Agora pode gritar em campo, pode vociferar e até a bola há de correr atrás dele, como uma cadelinha puxa-saco. E parece que o Vasco ainda não percebeu que tem, em casa, um Vavá, sim, mas transfigurado pelo Campeonato do Mundo.

Daí o equívoco grotesco: — o clube de São Januário trata Vavá como se este fosse o antigo, e não o atual Vavá. Eis a verdade: — os nossos clubes ainda não se acostumaram a ser campeões do mundo. Ainda não reajustaram os seus critérios. Mas eis onde eu queria chegar: — um Vavá, ou Orlando, ou Bellini pertence a esta categoria de valores que não se vende. Sua presença no Vasco é uma glória intransmissível. Poderão vociferar: — “E os milhões?” Eu continuarei argumentando que nós só vivemos e só morremos por valores gratuitos.

Há ainda um aspecto, que vem a ser o interesse do jogador. Acho também improcedente o raciocínio que se usa em relação a Vavá. Ninguém vive só de milhões materiais. E os milhões subjetivos? Só a língua da terra vale um milhão bem-contado. Vão tirar de Vavá o seu idioma e quem pagará por isso? As piadas, os palavrões, em outra língua, que graça podem ter? Alguém insistirá no argumento dos milhões. Não importa. Aqui, Vavá está feliz e realizado como um peixinho no seu aquário. Por outro lado, convém aceitar esta verdade recente — o campeão não é apenas um jogador de futebol. É um herói: nenhum clube, nenhum povo tem o direito de vender seus heróis. Nem o herói tem o direito de vender a si mesmo. Amigos, no dia em que deixarmos de prezar os valores gratuitos, vamos cair todos de quatro, todos.


 Jornal dos Sports, 26/7/1958

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