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sábado, 12 de julho de 2014

Coices e relinchos triunfais




Por Nelson Rodrigues

Amigos, o meu personagem da semana é o cronista patrício que foi a Inglaterra. Pois bem: — saiu daqui bípede e voltou quadrúpede. Desembarcou no Galeão soltando, em todas as direções, os seus coices triunfais. Por aí se vê que o subdesenvolvido não pode viajar, e repito: — não pode nem ultrapassar o Méier. A partir de Vigário Geral, baixa, em nós, uma súbita e incontrolável burrice.

Não há, nas palavras acima, nenhuma piada. Faço uma casta e singela constatação. Ponham um inglês na Lua. E na árida paisagem lunar, ele continuará mais inglês do que nunca. Sua primeira providência será anexar a própria Lua ao Império Britânico. Mas o subdesenvolvido faz um imperialismo às avessas. Vai ao estrangeiro e, em vez de conquistá-lo, ele se entrega e se declara colônia.

É o que está acontecendo nas nossas barbas estarrecidas. O cronista que foi à Inglaterra (salvo raríssimas exceções) quer apenas isto: — fazer do futebol brasileiro uma miserável colônia do futebol inglês. Insisto no problema da viagem. O brasileiro que vai a Vigário Geral volta com sotaque, mas pergunto aos paralelepípedos de Boca do Mato: — tínhamos alguma coisa que aprender com o inglês? 

Sim. Tínhamos. Por exemplo: — aprendemos como ganhar no apito. E, realmente, fomos caçados com a conivência deslavada dos juízes, dos juízes que a Inglaterra manipulava. Aí está o Canal 100. É o cinema, com uma ampliação miguelangesca, mostrando o nosso massacre. Nada descreve e nada se compara ao cinismo com que se exterminou Pelé. Tal cinismo foi, talvez, a maior lição que recebemos da Copa.

A melhor lição e não a única. Aprendemos também que um império se faz pulando o muro e saqueando o vizinho. E só uma coisa não precisávamos aprender: — futebol. Vocês viram a sorte do escrete russo no Brasil. É uma das melhores equipes do mundo. Só não foi finalista, no lugar da Alemanha, porque jogou a semifinal com nove elementos. E, aqui, a Rússia perdeu até em Maringá.

Mas há pior: — o mesmíssimo escrete russo tomou um banho de bola e de gols, sabem onde? Em Moscou. Aqui, o escrete inglês levou uma de cinco. Vejam bem: — de cinco. E só concedemos ao adversário um único e compassivo gol. Pois bem. Vai o cronista à Inglaterra e lá tem todo o comportamento do subdesenvolvido, de várias encarnações. O futebol inglês, ou alemão, ou russo é de uma clara, taxativa, ululante mediocridade.

Trata-se de um retrocesso evidentíssimo. A grossura, a truculência, a deslealdade ou, numa palavra, o coice nunca foi moderno. É um futebol que se devia jogar de quatro, aos relinchos, aos mugidos; e que também se devia assistir de quatro, com os mesmos relinchos e os mesmos mugidos. Muito bem: — e que faz o cronista? Quer que o jogador brasileiro, o melhor do mundo, também se transforme num centauro — um centauro que fosse a metade cavalo e a outra metade também.

E não sei se vocês viram a página mais negra da nossa crônica. Vários colegas escalaram o escrete da Copa. Não há um único e escasso brasileiro. O leitor há de perguntar: — “Nem Pelé?” Nem Pelé. O cronista patrício está de tal forma fascinado com o futebol débil mental que varreu do mapa o divino crioulo. Dirá alguém que Pelé só jogou contra a Bulgária e foi assassinado no jogo Brasil x Portugal. 

O Canal 100 foi um cinejornal criado por Carlos Niemeyer no fi nal da década de 1950. O informativo era apresentado antes da exibição dos filmes nos cinemas.  Mas nenhum jogador europeu fez, jamais, nada que se parecesse com as jogadas de Pelé na estreia brasileira. E mesmo de maca, mesmo de rabecão, ele teria que entrar em qualquer seleção da Copa. E Gilmar? E Paulo Henrique? E Altair etc. etc. Saímos da burrice da comissão técnica e vamos cair na burrice de certa crônica. Uma conseguiu destruir o escrete, a outra quer destruir o próprio futebol brasileiro.

Graças a Deus, há duas pessoas inteligentes em nosso futebol: — o craque e o torcedor. Os dois não estão de quatro. O craque tem uma qualidade que não se deixou cretinizar pela viagem. E a torcida sabe que a finalíssima foi a festa da mediocridade chapada.

Eu quero terminar dizendo: — quando, após a partida anteontem, o capitão inglês ergueu as mãos ambas a Jules Rimet, o urubu de Edgard Allan Poe declarava aos jornalistas credenciados: — “Nunca mais, nunca mais!” E, de fato, como as outras Copas vão ser disputadas em terreno neutro, nunca mais a Inglaterra vai conseguir impor o seu futebol sem imaginação, sem arte, sem originalidade. E o cronista que foi nos dois pés e voltou de quatro que se cuide. O mesmo urubu de Edgard Poe diria que não se levantará nunca mais, nunca mais, nunca mais.


O Globo, 1/8/1966

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