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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Sobre transplante de instituições





“Sobre transplante de instituições
        
Por Fernão Lara Mesquita

Um dos instrumentos que o ministro Moro quer incorporar ao seu pacote de segurança publica é a “negociação de culpabilidade” (plea bargain) dos americanos, em que o réu abre mão de declarar-se inocente e forçar o Estado a processá-lo e declara-se culpado em troca de uma redução da pena. Esse dispositivo reduziu em até 90% os processos por crimes menores nos Estados Unidos.

Nem sempre, porém a transposição de dispositivos de lá para cá dá resultado. Em geral, importa-se só metade da receita e então os sinais se invertem. O desastre master chef da modalidade é o de replicar uma Suprema Corte encarregada de examinar a conformidade das leis e ações dos governos e cidadãos com os 7 artigos e 28 emendas da Constituição deles e depois escrever uma Constituição com 250 artigos, 104 dispositivos transitórios e 99 emendas. Mas peças bem mais prosaicas também produzem resultados controvertidos. As delações premiadas, por exemplo. Elas puseram altos criminosos de colarinho branco ao alcance da Justiça pela primeira vez em nossa História, mas logo passaram a ser instrumentalizadas em disputas da privilegiatura pelo controle do “sistema”.

Toda lei é uma faca de dois gumes. Quanto mais forte e pesada a pena, mais valiosa será a isenção e, portanto, mais poder de corromper o aplicador da lei ela terá. O caso mais emblemático foi aquele tramado entre a Procuradoria-Geral da República sob Rodrigo Janot e os irmãos “ésleys”, da JBS, em que procuradores atuaram a soldo dos bandidos e houve outras estripulias grosseiras que resultaram em que a reforma da Previdência fosse abortada, o País fosse condenando a mais dois anos de paralisia e os agentes das falcatruas nacionais e internacionais do PT que provariam que Petrobrás, Odebrecht e Cia. foram coisa de criança saíssem livres, leves e soltos. É com esse retrospecto em foco que já se instalou o debate sobre como evitar que a “negociação de culpabilidade”, em vez de apenas acelerar a justiça, que é sinônimo de fazer justiça, não se vá transformar em mais um elemento de comércio de impunidade.

Outros pontos do pacote de Moro e das propostas pregressas do Ministério Público são passíveis do mesmo tipo de consideração. A pergunta que interessa, portanto, é: por que, exatamente, instrumentos idênticos funcionam perfeitamente lá, mas não aqui?

Não, não é “porque os brasileiros são mais corruptos que os outros”. O problema é muito mais objetivo que isso. A questão-chave é a definição de quem terá o poder de aplicar essas leis, e como. Enquanto forem o Estado e seus agentes os únicos autorizados a decidir o que deve ou não ser investigado no Estado e em seus agentes, não tiraremos o pé da lama. O que mais falta não são mais leis e agentes do Estado pouco interessados em “combater a corrupção”, mas sim controle direto do eleitorado sobre o Estado e seus agentes pela simples razão de que só os roubados têm razões objetivas diretas para exercer essa tarefa sem se deixar corromper. Eles e somente eles, condicionados pela obrigação de obter consenso, devem ter o poder de decidir como devem começar e como devem acabar os processos contra os seus políticos e funcionários corruptos ou relapsos.

É esse vetor primário de forças positivo que garante que o sistema americano opere sempre na boa direção ou, na pior hipótese, tenha o seu rumo corrigido de qualquer desvio eventual. Como têm a prerrogativa de retomar mandatos, vetar leis, propor e aprovar as suas próprias a qualquer momento e decidir a cada quatro anos quais juízes permanecem ou não com o poder de julgar os outros, os eleitores americanos estão dispensados de pedir vênia a quem quer que seja para mandar os seus corruptos se haver com a Justiça, emendar sentenças ou ir aperfeiçoando as suas instituições na exata medida da necessidade. Vivem num estado de reforma permanente, obra coletiva na qual cabe aos agentes do Estado apenas dar o acabamento técnico ao que o povo decide.

Em meio aos milhares de “special elections” de 2018 para cassações de políticos e funcionários, vetos ou aprovações de leis, recusa de aumentos de impostos, etc., dois casos afetando o Judiciário chamaram especial atenção. No primeiro, toda a Suprema Corte do Estado de West Virginia (equivalente aos nossos TJs) sofreu recall porque seus seis integrantes ou gastaram dinheiro em reformas dos seus gabinetes consideradas abusivas (troco comparado aos números da corrupção brasileira), ou foram flagrados usando verbas de combustível em viagens de interesse pessoal. No segundo, o juiz Aaron Persky, membro da Suprema Corte do Estado da Califórnia, sofreu recall por ter condenado a apenas seis meses de prisão um estudante de Stanford que estuprou uma colega enquanto estava desmaiada. Um por falta, os outros por excesso, lá interveio o povo para educar e calibrar a máquina pública e a Justiça às suas necessidades e conveniências.

A montanha de entulho institucional que tem mantido o Brasil paralisado foi acumulada pela falta de qualquer controle exterior ao âmbito do Estado sobre o Estado e seus agentes. E não poderá ser desmontada com reformas pontuais propostas por eles para eles mesmos. Para isso será necessário concentrar todas as energias da cidadania em exigir os instrumentos necessários para impor ela própria a sua vontade aos seus representantes e servidores, o que começa pela adoção de eleições distritais puras, as únicas que permitem identificar quem representa quem e, assim, definir quem tem o direito de demitir quem numa “democracia representativa”.

Ainda que comecemos por fazer isso só no âmbito municipal, não haverá mais reversão. O uso dessa arma vicia e o País, reconciliado com a democracia, ganhará a condição de ir desconstruindo peça por peça o monturo legislativo no qual está aprisionado na velocidade que convier a cada segmento da sua população, pois, não importa a partir de onde nem em qual velocidade, a felicidade para uma sociedade consiste apenas em poder andar sempre para a frente e com as próprias pernas.”

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