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quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

A questão do salário na democracia




“A questão do salário na democracia
     
Por Fernão Lara Mesquita

Escondidinho no jornal menos lido do ano, o da ressaca do primeiro dia da década que o País inteiro torce para que venha a ser finalmente “a ganha”, a Folha de S.Paulo registrou solitariamente estudo da Controladoria-Geral da União que constata que desde 2003 nem um único funcionário público brasileiro foi demitido por mau desempenho, veja você! Houve “expulsões” por flagrante de roubalheira, mas a matéria não esclarecia se os excluídos perderam também os salários ou se, como acontece com os juízes ladrões, foram apenas aposentados compulsoriamente com todos os “direitos” garantidos.

No mesmo período, que coincide com a “Era PT”, triplicou o gasto com a folha de pagamentos do funcionalismo (0,5% da população), do que resultou que mais de 92% da quase metade do PIB que o governo toma todo ano ao País que produz com o pretexto de investir em infraestrutura, educação, saúde e segurança públicas passou a ser gasto só com a privilegiatura, o que resume para além da costumeira empulhação a causa da presente miséria nacional.

Estabelecido o fato, entretanto, prosseguia a matéria pelo padrão geral da imprensa, qual seja, a discussão com “especialistas”, todos eles também funcionários públicos, sobre qual a “solução” possível excluída a única efetiva, que é aderir ao regime democrático. E lá vinha: que há 21 anos está inscrito na Constituição que funcionários podem ser demitidos por “insuficiência de desempenho”, mas a matéria nunca foi regulamentada; que, embora haja esboços de “meios para premiar o bom desempenho” (ao qual será sempre interposta a regra da “isonomia” elevada à condição de intocável “princípio” por édito do Poder Judiciário, que herdou intactos os poderes do imperador), “faltam instrumentos de avaliação para punir o mau desempenho”, outra impossibilidade prática fora da ordem democrática, aliás, pois sem ela serão sempre os próprios “fornecedores”, e não os “clientes”, que “avaliarão” quando um serviço público foi bem ou mal prestado...

Na democracia pode variar quem toma a iniciativa de propor qualquer regra ou mudança de regra – os eleitores ou os eleitos –, mas não varia nunca quem toma a decisão final. E o campo onde mais evidentemente se pode constatar o caráter opressivo das decisões impostas fora da ordem democrática é o da regulamentação dos salários, tanto públicos quanto privados.

A Constituição dos Estados Unidos só menciona salários em quatro passagens: ao definir que o presidente, os legisladores e os juízes farão jus a “uma compensação” que não poderá ser aumentada ou diminuída durante seus mandatos e na 28.ª e última emenda, de 1992, que determina que qualquer alteração nos salários dos congressistas decidida em plenário só vigorará para o próximo Congresso eleito.

Nas Constituições estaduais os salários públicos são definidos com ou sem a mediação de comissões especiais independentes, mas, ou antes, ou depois da aprovação, a decisão tem de ser ratificada pelos eleitores ou pode ser desafiada por eles em referendo. Só quatro cargos são definidos nessas Constituições. Os de governador e vice, o de chefe do Ministério Público e o de secretário de Estado, o encarregado de organizar todas as “eleições”, as do calendário e as “especiais”, que incluem as “deseleições” por recall (230 funcionários foram alvo delas em 2019), os referendos de leis dos Legislativos e outras decisões no voto que vão da aprovação ou não de obras públicas específicas ao casamento gay. Os quatro são diretamente eleitos pelo povo. Todas as outras “secretarias” estaduais são opcionais. Cada Estado pode ter as que quiser e definir se quer seus titulares eleitos ou nomeados. Vai daí, em 2016 o funcionário mais bem pago em todos os 50 Estados era o secretário de Educação, recebendo por volta de 300 mil dólares/ano, quase o dobro, em média, do que recebiam os governadores e os demais secretários.

Mais interessante ainda é a definição do salário mínimo. Na virada do ano 24 Estados mais Washington D.C. já tinham decidido aumentos do “salário mínimo por hora” de 2020. Os acréscimos vão de 0,10 dólar na Flórida a 1,50 no Novo México, em Washington e Nova York. Em oito desses Estados os aumentos são determinados por decisões de iniciativa popular anteriores indexando o salário à inflação, dez por leis votadas em 2019, seis por leis de iniciativa popular alterando decisões anteriores.

Nova York e Oregon têm três mínimos diferentes: para New York City, Long Island e Westchester e para o interior, um; para a área metropolitana de Portland e para o resto do Estado, caso a caso, o outro. Washington tem mínimos diferentes para quem recebe ou não gorjetas. Nevada diferencia os que recebem e os que não recebem benefícios de saúde. Há os que atrelam e os que não atrelam os aumentos à inflação. Há os que decidem ano a ano e os que fazem acordos de aumentos graduais por um período de vários anos.

A definição “por hora” atende ao requisito de plena liberdade de horário e tempo de trabalho que cada pessoa pode escolher ter para si. E as diferenças entre Estados apontam para a melhoria da distribuição da renda pela oferta de condições mais vantajosas de investimento e emprego para os Estados em piores condições na disputa por eles.

Assim, na próxima vez que lhe despejarem aquelas explicações complicadas e cheias de fronteiras indefinidas sobre o que é ou não “democracia”, feche seus ouvidos e saia bocejando. O que define isso não é o que está ou não escrito na Constituição ou neste ou naquele texto filosófico. A questão é absolutamente simples e incontroversa. A revolução democrática é a que inverte a hierarquia das relações de subordinação entre os membros da sociedade feudal. Há democracia quando todas as decisões do governo têm de ser submetidas ao povo. Não há democracia quando o povo é que é submetido a todas as decisões do governo. E só a ordem democraticamente estabelecida é legítima. Qualquer coisa fora dela é opressão e você tem não só o direito, como também o dever moral de não se submeter a ela.”

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