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quinta-feira, 10 de outubro de 2019

As desventuras de uma imprensa sem povo





“As desventuras de uma imprensa sem povo
     
Por Fernão Lara Mesquita

É claro que cada um tem a sua própria medida de tolerância. Mas se não pelo coletivo, ele mesmo, que é uma entidade autônoma com comportamento independente dos indivíduos que o compõem, certamente para os interlocutores da multidão que vivem de voto ainda é a imprensa, mais que qualquer outra força, que pauta todas as instâncias do “Sistema”, do vereador ao ministro do STF, sobre quais os assuntos que ele está ou não obrigado a tratar com prioridade e dentro de quais limites.

A quebra do paradigma tecnológico reduziu substancialmente a barreira de acesso a esse poder. A democratização da disponibilização de recursos gráficos e audiovisuais de qualidade para a produção de conteúdos com alcance planetário nas redes sociais multiplicou exponencialmente a quantidade de gente capaz de fazer barulho à primeira vista aparentado com jornalismo. Mas mais cedo do que tarde o mero fazedor de barulho terá a sua militância identificada como o que é.

As condições mínimas para ser acatado como uma instituição da República – o “4.º Poder” sem o qual não existe democracia – continuam as mesmas de sempre: estar equipado para cobrir em primeira mão os assuntos que serão a matéria-prima do debate político nacional respeitando um código de ética para o tratamento das controvérsias de todos conhecido, e ser “eleito” por um grupo numérica ou sociologicamente significativo da sociedade em que atua, o que não se consegue sem ter clareza bastante no seu tão inevitável quanto desejável posicionamento ideológico para que todo leitor/espectador saiba como se posicionar em relação a ele para amá-lo ou para odiá-lo.

A “isenção”, extensamente marketizada no Brasil do século passado, não sendo humana, é sempre fake. O registro burocrático do “outro lado” é nada menos que uma falsificação quando, como quase sempre, há desproporção na exposição de cada um. E justapor opiniões “contra” e “a favor”, mais frequentemente do que não, ou é um artifício silogístico para furar o viés editorial oficialmente adotado por um veículo “com dono jornalista”, coisa raríssima no Brasil de hoje em dia, ou um meio para pôr alguma coisa sob suspeita sem assumir essa atitude. Nenhum desses expedientes tem qualquer coisa a ver com um esforço genuinamente jornalístico de apuração e busca da verdade, que é coisa que não se afere pelo resultado que possa dar, mas pela trajetória percorrida pela reportagem, que deve ser relatada com minúcia suficiente para convencer o leitor/espectador de que de fato foi feito.

As regras que balizam o 4.º Poder estão entre aquelas não escritas do jogo democrático reconhecidas tanto por quem sabe quanto por quem não sabe descrevê-las verbalmente, e que por isso mesmo têm infinitamente mais força que todas as que são escrevinhadas ou gritadas por aí para tentar anulá-las. E é exatamente pela força que tem o “4.º Poder” que há tanta gente empenhada em falsificá-lo e até manuais de conquista do poder através da sistematização cientificamente orientada dessa falsificação como são o de Antonio Gramsci e as novas técnicas de algoritimização do endereçamento da mentira.

No Brasil de hoje é fácil identificar, entre os principais veículos de imprensa escrita, falada, televisiva ou de internet, 1) os que olham o País, seja com os olhos da esquerda, seja com os olhos da direita da “privilegiatura”, entendida como o restrito grupo legal e constitucionalmente credenciado para disputar o poder e o pequeno exército que, uma vez “lá”, ele unge com a dispensa de segurar o emprego e disputar a ascensão nas carreiras com a entrega de resultados e com o “direito adquirido” de se apropriar de metade da renda nacional sem dar nada em troca para a coletividade; 2) os que, no esforço para permanecer “no meio”, atrelam o seu olhar às instituições... que criaram a “privilegiatura”, que continuará onde está enquanto elas “estiverem funcionando”; 3) os que tudo referem a uma abordagem policialesca focada exclusivamente nos efeitos, e não nas causas dos aleijões institucionais brasileiros; e 4) quem faça tudo isso no todo ou em parte numa linguagem mais culta ou vazada em tons variados de um “populismo jornalístico” que ecoa, contra ou a favor, os populismos que se alternam no poder.

Assim, a imprensa acaba, inevitavelmente, ficando cínica como os “lados” a que se atrela, ou alienada, quando não insuportavelmente injusta como são as “instituições que funcionam”, ou ainda superficial e perigosamente jacobina como poderá ser também qualquer dos lados que “apropriar-se” do Poder Judiciário. É por isso que a imprensa inteira está hoje na mesma cesta do resto do País Oficial onde o País Real, com o justo rancor dos traídos, a vê.

O anti-intelectualismo que, com um século de atraso como tudo o mais, tem a sua versão brasileira, não é, como alguns querem fazer crer, uma atitude gratuita de inimigos de nascença da cultura, é uma resposta ao elitismo europeu; mais precisamente a rejeição da tentativa de desclassificação do senso comum como ferramenta competente de solução de problemas da comunidade. Ou, em outra formulação mais chã, uma reação à exclusão da comunidade da solução dos problemas da comunidade; um basta à busca a esta altura nada menos que hipócrita de uma elite alienada por respostas exclusivamente onde há cinco séculos, 19 anos e 10 meses o País Real mais a torcida do Corinthians estão carecas de saber que elas não estão.

É preciso começar tudo de novo. No Brasil tudo está em aberto. As instituições estarem funcionando não é a solução, é o problema. Ainda está por ocorrer o ato fundador da sociedade democrática brasileira. E a imprensa só encontrará um tom digno do papel do jornalismo numa democracia; a imprensa só se tornará inteligível para o Brasil Real – a única condição da sua sobrevivência – se e quando partir do elemento essencial do drama brasileiro que é, em pleno 3.º Milênio, sermos ainda uma sociedade feudal onde as linhas divisórias não são de classe, na horizontal, são de casta, na vertical.”

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